Professora Fabiane Tamara Rossi
A “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” na historiografia: uma breve leitura
por Fabiane Tamara Rossi
A universalidade que os princípios norteadores da Revolução Francesa atingiram em boa parte do mundo é um estimulante para a realização deste escrito. Ocorrida em fins do século XVIII, a Revolução Francesa consistiu na derrubada do regime político-social francês (monárquico absolutista), a partir das contestações de uma pequena parcela da nobreza e de quase a totalidade do Terceiro Estado[3], instaurando-se na França uma nova ordem social, econômica e política (extinção dos estamentos, reformulação do Direito, liberalismo provocado pela ascensão da burguesia no poder).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão - síntese das idéias defendidas na Revolução, influenciou muitos movimentos revolucionários no século XVIII e XIX e a própria constituição ideológica das sociedades contemporâneas. De inspiração iluminista, o documento defende o direito à liberdade, à igualdade perante a lei, à inviolabilidade da propriedade e o direito de resistir à opressão.
Tomando-a como foco central de análise, objetiva-se nesse artigo perceber como a Declaração dos Direitos foi concebida pela historiografia ao longo de seus dois séculos de existência. Justifica-se a análise historiográfica como um veículo ao qual se pode perceber as diferentes interpretações de um mesmo fato ou acontecimento, neste caso, a Declaração dos Direitos.
A primeira interpretação desse documento apareceu na França, no início do século XIX, como uma tentativa de reavivar a memória da Revolução, frente ao perigo do retorno do Antigo Regime ao país. Os historiadores liberais, como Lamartine e Michelet, criam o "mito da Revolução redentora da humanidade".[4] É uma versão essencialmente comprometida com sua época, período de ascensão de domínio burguês. Viam na Declaração uma garantia por escrito dos direitos dos cidadãos defendidos pelo Estado civil.
Escrevendo através de uma forma romanceada, Michelet diz que, tanto a oposição quanto os políticos conservadores examinaram a Declaração com um "sentimento de religião".[5] Em seu texto, destaca o caráter iluminista do documento, como também a importância em se pensar os três referenciais norteadores da Revolução: a igualdade, a fraternidade e a liberdade. Nota-se em Michelet a concepção de que a Declaração fora concedida à população francesa pelos deputados da Assembléia Nacional, e não como uma conquista do povo, através de manifestações e revoltas.
Contrapondo-se à versão liberal, têm-se a corrente marxista da Revolução Francesa, iniciada pelo próprio Karl Marx no século XIX, que discute os princípios tão exaltados pelos liberais: igualdade, liberdade e fraternidade, crendo na inaplicabilidade destes à França pós-revolucionária. Marx não via uma sociedade livre, igual e fraterna, mas uma sociedade dividida em duas classes: os dominantes e os proletários.
Para os historiadores marxistas, uma nova visão também deveria ser anexada às causas da Revolução: acreditam que ela não ocorreu apenas pela influência do Iluminismo, mas primeiramente e principalmente pelas mudanças ocorridas na economia francesa.
No século XX vários historiadores comungaram das idéias de Marx, apesar de não tê-las como ortodoxas, dentre eles Mathiez, Lefebvre [6] e Soboul. Afirmavam estes que o Terceiro Estado não era de um todo homogêneo, como supunham os liberais, mas sim grupos que lutaram e buscaram de várias maneiras por seus direitos.
Humanista e democrata francês, Lefebvre utiliza seu livro "1789: O surgimento da Revolução Francesa" para fazer um apelo à juventude do país: "Juventude de 1939! A Declaração também é uma tradição e uma tradição gloriosa".[7] Nesta obra, Lefebvre dedica à Declaração dois capítulos do livro, fazendo uma discussão em torno dos direitos maiores do homens, que segundo ele, são "a liberdade, a propriedade, a segurança, a resistência à opressão". [8] O tratamento que dá a elaboração e discussão do documento é meticuloso.
No texto de Lefebvre pode-se perceber uma exaltação do conteúdo e do significado da Declaração, para ele, um importante instrumento para manutenção da unidade nacional. Discorda com os historiadores liberais, em especial Michelet, por acreditar que a Declaração fora uma conquista do povo, tendo a Assembléia Nacional Constituinte redigindo-a por medo. "Nobreza e clero abriram mão de privilégios para que os parlamentares não perdessem o controle dos acontecimentos...entregaram os anéis para salvar os dedos".[9]
Segundo Albert Soboul, historiador contemporâneo à Lefebvre (o qual escreve o posfácio de 1789), o artigo da Declaração no qual diz os cidadão que "se abusarem de seu poder com relação aos outros e sobretudo se recusarem, por egoísmo pessoal, a assegurar a salvação da comunidade, este perecerá, e com ela sua liberdade, e até mesmo sua existência" é o ponto mais profundo da declaração. " (...) supõe, para os cidadãos, o patriotismo no sentido próprio do termo, o respeito do direito dos outros a consagração racional à comunidade, a "virtude" segundo Montesquieu, Rousseau e Robespierre".[10] Liberdade, mas com autovigilância, controle rigoroso sobre si mesmo. Reforçando assim, o que queria Lefebvre, o nacionalismo, a liberdade, a república.
Outro autor importante na discussão da Revolução Francesa é Eric Hobsbawn. Sendo de uma corrente mais atual da historiografia, e apesar de não simpatizar inteiramente com a teoria marxista, mas ainda considerando-o como marxista, vai se diferenciar de Lefebvre em sua forma de perceber a Declaração dos Direito do Homem e do Cidadão.
Em sua obra "A Era das Revoluções 1789-1848"[11], Hobsbawn dedica um dos capítulos à Revolução Francesa, no qual faz uma discussão de quais seriam os princípios norteadores da Declaração, a quem realmente beneficiava, questionando também seu caráter fraterno, igualitário e democrático. Para ele, as exigências burguesas é que foram delineadas na Declaração, criticando a concepção de que esta expressava a vontade geral do povo. Vê a Declaração como sendo um manifesto "contra a sociedade hierárquica de privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e igualitária"[12], discordando neste ponto principalmente dos historiadores liberais e até certo ponto do próprio Lefebvre.
Hobsbawn preocupa-se sem apresentar o caráter dual da Declaração, a qual expressa uma série de direitos, mas não aplicáveis ou que não foram aplicados à França do século XVIII, como o direito natural a propriedade, a segurança e a liberdade.
Considerações finais
Tem-se, a partir deste artigo, a oportunidade de perceber a não neutralidade da História, e em como ela pode ser usada como veículo propagador de ideologias. É o que se percebe ao analisar as diferentes visões da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”. Os autores analisados aqui, independente da vertente historiográfica a qual pertencem, apresentam formas diferentes de perceber ou ler o documento em questão.
Nota-se que a maior influência recebida pelos autores consiste na prática e nas exigências de suas relações sociais. Segundo Paolo Nosella, as diferentes interpretações históricas têm uma profunda relação com a memória, pois esta é, para ele, o ato de reviver subjetivamente a história (passado), sempre com uma perspectiva do futuro.[13] Ou seja, a memória da Revolução Francesa é revivida segundo as exigências ou as necessidades apresentadas no presente, sempre almejando algum perspectiva futura.
Referências Bibliográficas
HOBSBAWN, Eric. "A Revolução Francesa". IN: _. A Era das Revoluções 1789-1848. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. (p.83-113).
LEFEBVRE, Georges. 1789: O surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
MARQUES, BERUTTI, FARIA (org). História Contemporânea através de textos. São Paulo: Contexto, 2001.
MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa: a queda da Bastilha à festa da Federação. São Paulo: Companhia das Letras/Círculo do Livro, 1989.
OSTERMANN, KUNZE. "Nós e os revolucionários". IN: _. Às armas, cidadãos - A França revolucionária (1789-1799). 2ª ed. São Paulo: Atual, 1995.
[1]Este artigo foi produzido a partir de reflexões desenvolvidas na disciplina de História Contemporânea I, ministrada pela professora Méri Frotscher, no ano de 2003.
[2] Licenciada e Bacharel em História (UNIOESTE) e Licenciada em Artes Visuais (FACIAP/UNIPAN). Especialista em Arte-Educação (ESAP)
[3]Composto por 98% da população e constituído pela alta burguesia (banqueiros, financistas e grandes empresários); média burguesia (profissionais liberais, médicos, dentistas, professores, advogados e outros); pequena burguesia (os artesãos, lojistas); o povo, camada social heterogênea de artesãos, aprendizes e proletários; as classes populares rurais, nas quais destacavam-se os servos ainda em condição feudal (uns 4 milhões).
[4]OSTERNANN & KUNZE. Às armas, cidadãos - A França revolucionária (1789-1799). 2ª ed. São Paulo: Atual, 1995, p.05
[5]MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa: da queda da Bastilha à festa da Federação. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
[6]Apesar de sua teoria apresentar tendências marxistas, Lefebvre não pode ser considerado ortodoxo. Segundo Soboul, Lefebvre tinha uma tríplice influência: o marxismo, a ideologia republicana e o método positivista. Prefácio "Georges Lefebvre - historiador da Revolução Francesa, escrito por Albert Soboul. In: LEFEBVRE, Georges. 1789: O surgimento da Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p.11
[7]Apud. Prefácio de Soboul ao livro de LEFEBVRE, op.cit., p.30
[8]LEFEBVRE, op.cit, p.177
[9]OSTERNANN & KUNZE op.cit.p.11
[10]LEFEBVRE, op.cit. p.25-26
[11]HOBSBAWN, Eric. "A Revolução Francesa". IN: _. A Era das Revoluções 1789-1848. 16ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
[12] HOBSBAWN, Er. Op.cit., p.91
[13]Anotações da palestra proferida por Paolo Nosella no seminário "Desafios da Educação Pública na Sociedade Brasileira", UNIOESTE, Campus de Cascavel, dia 01 de novembro de 2003.
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