quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

História e Memória: Perspectivas Sócio-Culturais

História e Memória: Perspectivas Sócio-Culturais

por Rodrigo Poreli Moura. Bueno




O intuito deste artigo é pensar e refletir, em linhas gerais, a respeito de algumas questões teórico-metodológicas dentro dos estudos da História. Então, faremos aqui um diálogo com algumas obras e autores, no que tange principalmente à importância do papel da História e da Memória, suas aproximações com a História Oral e seus desdobramentos no campo da cultura e da sociedade contemporâneas.

É sabido que nos últimos tempos, inúmeras transformações marcaram o debate his­toriográfico. A objetividade das fontes escritas com que o historiador trabalha foi certamente posta em xeque. A fundação, na França, da revista Annales, em 1929, e da École Prati­que des Hautes Études, em 1948, iria dar impulso a um profundo movi­mento de mudanças no campo da história. Em nome de uma história total, uma nova geração de historiadores, passou a questionar a hegemonia da História Política (BURKE, 1997, p. 11-12).

Esse grupo reivindicava uma nova concepção, em que o econômico e o social deveriam ocu­par um espaço mais privilegiado dentro do campo da História. Essa “Nova História” sustentava que se devia considerar as conexões que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, direcionavam os mecanismos eco­nômicos, organizam as relações sociais e produziam as formas do discurso. Daí a afirmação de uma cisão radical entre o objeto do conhecimento histórico propriamente dito e a consciência subjetiva dos atores (Id. Ibid., p. 12)

A imensa modificação que se operou no campo da história a partir da França, e que se propagou para outros países, pouco questionou a valorização das fontes escritas. Ao contrário, reafirmou-a. Ao enfatizar o estudo das estruturas, dos processos de longa duração, a denominada “Nova História” atri­buiu às fontes seriais e às técnicas de quantificação uma relevância essencial. Não é preciso dizer que muitos dos historiadores identificados com a tradição dos Anna­les desprezaram a possibilidade da importância dos testemunhos diretos e das fontes orais (Id. Ibid., p. 12-13).

Porém, a partir de meados da década de 1970, ocorreram outras novas variações importantes nos diferentes campos da pesquisa histórica. Deu-se destaque a análise qualitativa e buscou-se a valorização das experiências individuais, ou seja, deslocou-se o interesse das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as situações singulares. Paralelamente, ganhou força a história cultural, ocor­rendo um ressurgimento do estudo do político e associando-se à história o estudo do contemporâneo.

Dessa maneira, o aprofundamento das discussões acerca das afinidades entre passado, presente e memória, abriram novos caminhos para o estudo da história do século XX. Por sua vez, a expansão dos debates sobre a memória e suas aproximações com a história veio oferecer chaves para uma nova percepção do passado. O interesse dos historiadores pela memória foi em grande medida inspirado pela historiografia francesa, sobretudo a história das mentalidades coletivas (CHAUVEAU; TÈTARD, 1999, p. 12). Nesses estudos, focalizavam-se, principalmente a cultura popular, a vida familiar, os hábitos locais, a religiosidade, entre outros, sendo que a questão da memória já estava implícita, embora não fosse investigada diretamente.

Ressalta-se que os debates sobre a relação entre história e memória são relevantes atualmente, pois envolvem os objetivos e fundamentos do trabalho histórico. Primeiramente, a memória não pode ser vista simplesmente como um processo parcial e limitado de lembrar fatos passados, de importância secundária para as ciências humanas. Trata-se da construção de referenciais sobre o passado e o presente de diferentes grupos sociais, embasados nas tradições e intimamente ligados a mudanças culturais. Em que pese a história não possuir mais a pretensão de estabelecer os fatos como realmente aconteceram, ainda persistem uma série de diferenças no que se refere a como considerar a memória para a construção de uma interpretação histórica.

Nesse contexto, a formulação teórica do sociólogo Maurice Halbwachs ganha destaque, passando a integrar o universo teórico dos historiadores. A questão central sobre esse tema, para o autor mencionado, consiste na afirmação de que a memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as lembranças são constituídas no interior de um grupo. A origem de várias idéias, reflexões, sentimentos, paixões que atribuímos a nós são, na verdade, inspiradas pelo grupo. A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias do grupo, refere-se, portanto, a um ponto de vista sobre a memória coletiva. Olhar este, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo sujeito no interior do grupo e dos laços mantidas com outros meios. (HALBWACHS, 2004, p. 55).

Para além da formação da memória, Halbwachs aponta que as lembranças podem, a partir desta vivência em grupo, ser reconstruídas ou simuladas. Podemos criar representações do passado assentadas na inteligibilidade de outras pessoas, no que imaginamos ter acontecido ou pela internalização de representações de uma memória histórica. A lembrança, de acordo com Halbwachs, “é em larga medida uma reelaboração do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada” (Id. Ibid., p. 75-76).

Logo, as lembranças podem ser simuladas quando, ao entrar em contato com as lembranças de outros, sobre pontos comuns em nossas vidas, acabamos por expandir nossa percepção do passado, contando com informações dadas por outros integrantes do mesmo grupo. Por outro lado, afirma Halbwachs, não há memória que seja somente imaginação pura e simples ou representação histórica que tenhamos construído que nos seja exterior, isto é, todo este processo de construção da memória passa por um referencial que é o sujeito (Id. Ibid., p. 78, 81).

Dessa forma, a memória individual não está isolada. Freqüentemente, toma como referência pontos externos ao sujeito. O suporte em que se apóia a memória individual encontra-se relacionado às percepções produzidas pela memória coletiva e pela memória histórica. A vivência em vários grupos desde a infância estaria na base da formação de uma memória autobiográfica, pessoal.

Também importante neste processo, assinala Halbwachs, são as percepções acrescentadas pela memória histórica: “os quadros coletivos da memória não se resumem em datas, nomes e fórmulas, eles representam correntes de pensamento e de experiência onde reencontramos nosso passado porque este foi atravessado por isso tudo” (Id. Ibid., p. 71).

A memória apóia-se sobre o “passado vivido”, o qual permite a constituição de uma narrativa sobre o passado do sujeito de forma viva e natural, mais do que sobre o passado apreendido pela história escrita. Em Halbwachs, a memória histórica é compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país. O próprio termo “memória histórica” portanto, seria uma tentativa de agrupar questões opostas, mas, para entender em que sentido a História se opõe à Memória, para Halbwachs, é preciso que se atenha à concepção de História por ele empregada.

Para este autor, a memória coletiva é pautada na continuidade e deve ser vista sempre no plural (memórias coletivas). Ora, justamente porque a memória de um indivíduo ou de um país está na base da formulação de uma identidade, que a continuidade é vista como característica marcante. A História, por outro lado, encontra-se pautada na síntese dos grandes acontecimentos, como a história de uma nação, o que para Halbwachs faz das memórias coletivas apenas detalhes. Em suas próprias palavras:

O que justifica ao historiador estas pesquisas de detalhe, é que o detalhe somado ao detalhe resultará num conjunto, esse conjunto se somará a outros conjuntos, e que no quadro total que resultará de todas essas sucessivas somas, nada está subordinado a nada, qualquer fato é tão interessante quanto o outro, e merece ser enfatizado e transcrito na mesma medida. Ora, um tal gênero de apreciação resulta de que não se considera o ponto de vista de nenhum dos grupos reais e vivos que existem, ou mesmo que existiram, para que, ao contrário, todos os acontecimentos, todos os lugares e todos os período estão longe de apresentar a mesma importância, uma vez que não foram por eles afetadas da mesma maneira (Id. Ibid., p. 89-90).

Por outro lado, partindo de uma concepção diferenciada acerca da disciplina histórica, Pierre Nora, também trabalha com a noção de História e Memória, assim como Halbwachs. Nora salienta a diferença entre um e outro campo, quando afirma que, se a memória pode ser representada pela vida pois é carregada por grupos vivos, a história se apresenta, por conseguinte, como uma representação problemática e incompleta do que não existe mais.

]A memória, por outro lado, em constante evolução, um objeto vulnerável, está aberta a dialética da lembrança e do esquecimento. A história, enquanto representação do passado, se atrela a continuidades e descontinuidades temporais, sendo, pois, uma operação intelectual que demanda análise e discurso crítico. A memória, é afetiva e mágica, emerge de um grupo que ela une, é múltipla, acelerada, coletiva, plural e individualizada (NORA, 1993, p. 8).

Então, a memória, que tradicionalmente conferia às sociedades suas identidades sociais, teria sido “seqüestrada pela história”, sendo que a primeira seria “a vida”, e a segunda sempre uma “construção problemática e incompleta do que já não existe”. Deste modo, o historiador tenderia ao universal, enquanto o cuidado com a memória remeteria ao concreto, ao que se vincula espacialmente à determinada realidade. A História, segundo o autor, vai transformar a memória em objeto de uma “história possível” (Id. Ibid., p. 9).

Por isso, segundo Nora, será preciso criar “lugares de memória” para que a memória exista em algum lugar. É necessário pensar a institucionalização dos lugares de memória como um entrecruzar de dois movimentos: de um lado, uma transformação em termos de reflexão por parte da História; de outro, o fim de uma tradição de memória. O lugar de memória é, desta forma, um marco de transição entre dois eixos. Em suas dimensões concretas, tais lugares vão remeter a museus, arquivos, cemitérios, coleções, festas, aniversários, tratados, entre outros signos de rememoração. Assim, no momento em que uma tradição da memória enquanto processo experimentado e vivenciado coletivamente começa a se esvair, é preciso criar marcos para ancorar essa nova memória (Id. Ibid., p. 15).

A partir da concepção de Nora de que os “lugares de memória” podem ser pensados nos três sentidos da palavra, ou seja, tanto material, quanto simbólico e funcional, podemos considerar os meios de comunicação de massa - o cinema é um exemplo forte - como “lugares de memória” da sociedade contemporânea. Mais precisamente: seriam eles, se não os “lugares de memória” (dadas as interpretações mais restritas do conceito), com certeza espaços privilegiados no arquivamento e produção da memória contemporânea. Nesse sentido, não há como não assinalar, nas sociedades contemporâneas, a intrínseca relação entre os discursos midiáticos e a produção da memória ou como deseja Nora, uma memória que já não é memória espontânea, mas produzida.

Já o autor Michael Pollak, ao caracterizar a relação entre memória e identidade, define que a memória é um fenômeno construído (consciente ou inconsciente), como resultado do trabalho de organização (individual ou socialmente). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Pollack também define a identidade como a imagem que a pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria (POLLAK, 1992, p. 200).

Assim, a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, credibilidade e que se faz por meio da negociação direta com outros, sendo a memória construída socialmente e individualmente. Ao relacioná-la com a identidade podemos dizer que uma é constitutiva da outra, a identidade só se constrói a partir de referências exteriores, ou melhor, de um outro, e a memória só se forma a partir de alguma identificação. Memória e identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais e em conflitos que opõem grupos sociais e políticos diversos.

Ainda é importante observar que as memórias são resultado de experiências vivenciadas e que estas deixam poucos traços de si em nós. O filósofo Henri Bergson[2], no seu clássico trabalho sobre a memória, descreveu dois tipos de rememoração, a memória-hábito, que se faz presente em ações e atividades do dia-a-dia, isto é, em hábitos da vida cotidiana, e a memória que recupera imagens à semelhança do passado (BERGSON, 1990, p. 80)

O primeiro tipo de memória refere-se à habilidade de reproduzir algo que foi aprendido ao longo da vida. Já o segundo tipo, refere-se à recordação de um evento do passado, que é colocado no tempo-espaço e não pode se repetir. Bergson atribuiu à memória a capacidade de unir estes dois planos de experiência e creditou à memória a capacidade de nos permitir uma consciência espaço-temporal (Id. Ibid., p. 80-81).

Portanto, é preciso compreender que indivíduos não armazenam uma totalidade de experiências passadas. Ao lembrar um episódio vivenciado no passado, o indivíduo reconstitui o que aconteceu primeiro, a partir de uma massa ativa de reações ou experiências do passado organizadas, ou seja, a partir de uma estrutura já existente, como a linguagem, e de uma disposição que ele tem para lembrar, e, segundo, a partir dos fragmentos que sobraram da experiência vivenciada. Podemos dizer que estamos sempre reconstituindo o passado a partir do legado que o passado deixou em nós e que o balanço entre as determinações do passado e do presente não é jamais dado a priori. O fenômeno da memória implica uma complexa e intensa relação entre “passado” e “presente”, e mesmo a superposição de ambos.

Esta perspectiva que explora as proximidades entre memória e história pos­sibilitou uma abertura para a aceitação do valor dos testemunhos diretos, ao neutralizar as tradicionais críticas e reconhecer que a subjetividade, as distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma nova maneira, não como uma desqualificação, mas como uma fonte adicional para a pesquisa. Conseqüentemente, ganhou corpo as discussões a respeito do papel das fontes históricas, permitindo que a história oral ocupasse um novo espaço nos debates historiográficos atuais (JOUTARD, 2001, p. 267).

Pode-se afirmar que, a primeira geração de historiadores orais surgiu nos Estados Unidos nos anos 50, com o propósito de reunir material para historiadores futuros. Privilegiam-se as ciências políticas e procurava ocupar-se do que se denominou de “história dos notáveis”. Na Itália, a pesquisa oral foi utilizada para reconstituir a cultura popular, e no México, os arquivos orais registravam as memórias e recordações dos chefes da revolução mexicana, sendo que estes podem ser considerados como a segunda geração dos historiadores orais (Id. Ibid., p. 268).

De início, a história oral se desenvolveu em grande medida fora da comunidade dos historiadores. Ainda que guardando as especificidades próprias dos diferentes países com suas distintas tradições historiográficas, a fixação pelo documento escrito, a crença na objetividade das fontes e a concentração do interesse nos perío­dos mais remotos do tempo destinaram a discussão sobre a história oral, ou mesmo a respeito do uso das fontes orais, um espaço bastante restri­to no contexto dos debates teórico-metodológicos dos historiadores.

Os pesquisadores que trilham os caminhos da história oral subordinam a memória ao relato dos testemunhos sobre o que aconteceu no passado, inaugurando um novo campo de investigação. Há historiadores, no entanto, que se voltam para uma etnografia da trama de relações sociais do passado a partir da interpretação de construções simbólicas que não só antecedem, como ultrapassam o conteúdo de relatos obtidos. O estudo, por exemplo, acerca da lembrança de velhos que aparece na análise feita por Ecléa Bosi[3]não tem as mesmas características que aquele que se volta para as representações simbólicas analisadas pelos historiadores associados a Pierre Nora na constituição da nação francesa, por exemplo.

Os que defendem que a história oral seja uma técnica, geralmente, são pessoas envolvidas na constituição e preservação de acervos orais. Estes pesquisadores utilizam as fontes orais de forma esporádica, como fontes de informação complementar, o que teoricamente justificaria essa postura. É consensual, entretanto, que a história oral atingiu sua maioridade, e que apesar da discussão necessária, sobre o seu status, cada vez mais se encontram pessoas interessadas no tema. Nos processos de mudança no campo da história oral, é inegável o esforço com que estudiosos têm se empenhado em divulgá-la.

Segundo as autoras Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado, discutir estes temas é importante para que sejam definidos os rumos da história oral tanto no momento atual, como futuramente:

[...] Em nosso entender, a história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho – tais como os diversos tipos de entrevistas e as implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho – funcionando como ponte entre teoria e prática [...] (AMADO; FERREIRA, 2001, p. 16).

Para Marieta de Moraes Ferreira, uma avaliação mais detida do campo da história oral permite-se perceber duas linhas de trabalho que, embora não excludentes revelam perspectivas distintas. A primeira delas utiliza a denominação história oral e trabalha priori­tariamente com os depoimentos orais como instrumentos para preencher as lacunas deixadas pelas fontes escritas. Essa abordagem tem-se voltado tanto para os estudos das elites, das políticas públicas implementadas pelo Estado, como para a recuperação da trajetória dos grupos excluídos, cujas fontes são especialmente precárias (FERREIRA, 2002, p. 326-327).

O ponto fundamental que unifica as preocupações daqueles que se dedi­cam ao estudo das elites e dos que se voltam para o estudo dos excluídos é garantir o máximo de veracidade e de objetividade aos depoimentos orais produzidos. Então, não se evidencia uma discussão mais aprofun­dada sobre as implicações do uso da noção de memória. Em muitos casos a noção de memória é apresentada como algo estável e congelado no pas­sado a ser buscado pelo pesquisador (Id. Ibid.).

Os instrumentos para se atingir tais objetivos seriam a formu­lação, no caso dos estudos acadêmicos, de roteiros de entrevistas consis­tentes, de maneira a controlar o depoimento, bem como o trabalho com outras fontes, de forma a reunir elementos para realizar a contraprova e excluir as distorções. Com base nesses procedimentos, existem argumen­tos em defesa da história oral como capaz de apresentar relatos que, se não eliminam a subjetividade, possuem instrumentos para controlá-la (Id. Ibid., p. 327).

Uma outra perspectiva no campo da história oral é aquela que pri­vilegia o estudo das representações e atribui um papel central às afinidades entre memória e história, procurando realizar uma discussão mais refinada dos usos políticos do passado. Segundo Ferreira:

Nessa vertente a subjetividade e as deforma­ções do depoimento oral não são vistas como elementos negativos para o uso da história oral. Conseqüentemente, a elaboração dos roteiros e a rea­lização das entrevistas não estão essencialmente voltadas para a checagem das informações e para a apresentação de elementos que possam se consti­tuir em contraprova, de maneira a confirmar ou contestar os depoimentos obtidos. As distorções da memória podem se revelar mais um recurso do que um problema, já que a veracidade dos depoimentos não é a preocupa­ção central (Id. Ibid., p. 328).

Desse modo, as mudanças que têm caracterizado o campo da história, abrindo espaço para o estudo do presente, do político, da cultura, e redimensionando o papel do indivíduo no processo social, vêm, estimulando o uso das fontes orais e restringindo as desconfianças quanto à utilização da his­tória oral. No entanto, apesar dessas mudanças, o debate relacionado à legitimidade da história oral não é assunto pacífico. São constantes as avaliações de historiadores de diferentes países ou que trabalham com di­ferentes abordagens desqualificando esse método de pesquisa. As resistên­cias vão da rejeição completa, a partir da visão de que o depoimento oral apenas relata tramas, ao questionamento da expressão “história oral” em favor de “fontes orais” (FERREIRA, 2002, p. 329).

Umas das principais críticas à expressão “história oral” liga-se ao fato de que, nas sociedades contemporâneas, não existe um discurso oral puro, e a noção de que um depoimento oral só ganha sua plena significação em confronto com o documento escrito. Critica-se também a ideía de que a histó­ria oral seria uma outra história, uma história alternativa, mais compro­metida com a militância política do que com o rigor dos métodos acadê­micos. Na visão desses críticos, a história oral, tanto dos vencidos como dos vencedores, estaria marcada por deformações ideológicas (Id. Ibid.).

No entender da autora citada, o uso da expressão “fontes orais” parece encontrar uma aceitação maior. Além de ser uma denominação mais ampla, pode ser aplicada a qual­quer depoimento oral, produzido por qualquer indivíduo e em qualquer circunstância, sem nenhuma preparação prévia. Em suas palavras:


Há aí uma diferença em relação à história oral, que pressupõe a produção de uma fonte oral especí­fica resultante de um processo de elaboração e pesquisa por parte de um especialista. O emprego generalizado da expressão “fonte oral” conduziria à equiparação de uma fonte produzida pelo historiador com qualquer ou­tra fonte oral, revelando mais uma vez uma desvalorização do método da história oral (Id. Ibid.).

Deste modo, ainda que objeto de poucos estudos metodológicos mais consisten­tes, a história oral, não como uma disciplina, mas, como um método de pesquisa que produz uma fonte especial, tem-se revelado um instrumento essencial no sentido de possibilitar uma melhor compreensão da cons­trução das estratégias de ação e das representações de grupos ou indivíduos nas diferentes sociedades.

É necessário realçar que a linha historiográfica que enfatiza as vinculações entre memória e histó­ria quebra com uma visão determinista que restringe a liberdade dos homens, coloca em proeminência a construção dos atores de sua própria identidade e reorganiza as conexões entre passado e presente ao reconhecer com nitidez que o passado é erigido a partir das necessidades do presente. Mesmo que baseada nas fontes escritas, ela permite uma maior abertura, apta a neu­tralizar, em parte e indiretamente, as habituais críticas feitas ao uso das fontes orais, consideradas subjetivas e distorcidas.

Assim, ao indagar a respeito dos usos políticos do passado recente ou ao propor o estudo das visões de mundo de certos grupos sociais na constituição de respostas para os seus problemas, essas novas linhas de pesquisa tam­bém permitem que as entrevistas orais sejam compreendidas como memórias que refletem determinadas representações. Os possíveis desvirtuamentos dos depoimentos e a falta de veracidade a eles atribuídos podem ser interpretadas de uma maneira diversificada, não como uma desqualificação ou rebaixamento, mas, como uma fonte a mais para a pesquisa, tanto no campo da história, quanto no das ciências humanas.

REFERÊNCIAS

AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001.

BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997.

BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes: 1990.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz; EDUSP, 1987.

CHAUVEAU, Agnès; TÈTARD, Philippe (orgs.). Questões para história do presente. Bauru: EDUSC, 1999.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e história oral. Topoi, Rio de Janeiro, p. 314-332, dez. 2002.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

JOUTARD, P. História oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos. In: AMADO, Janaína.; FERREIRA, Marieta de Moraes. Usos & abusos da história oral. 4. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2001. p. 267-277.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo: PUC, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992.


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[1] Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis-SP). Professor Assistente do curso de História da Universidade Federal do Tocantins (UFT/Porto Nacional-TO).

[2] Ver: BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes: 1990.

[3] Ver: BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Queiroz; EDUSP, 1987.

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Manoel Messias Pereira

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