segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Foucault e a Ciência histórica

Cultura


Foucault e a ciência histórica

Maria Beatriz Nizza da Silva
Ao proferir a lição inaugural do College France em dezembro de 1970, Michel Foucault, depois de expor as principais exigencias de seu metodo, fez um comentário sobre a ciência histórica, tal como é atualmente praticada em França, que se reveste de grande importancia para quem se preocupa com os caminhos abertos a esta ciência.


ReproduçãoMichel Foucault, professsor do College FranceEm primeiro lugar, Foucault duvida que a direção indicada por Fernand Braudel seja a mais fecunda. É certo que o ome de Braudel não é expressamente referido, mas não pode haver duvidas quanto à alusão: "Atribui-se muitas vezes à história contemporânea e extinção dos privilégios outrora concedidos ao evento singular e o aparecimento de estruturas de longa duração" (L'ordre du discours, Paris Galimmard, 1971, pag 56). Basta falar em estruturas de longa duração, para o leitor se reportar imediatamente aos textos publicados por Braudel na década de 50, principalmente na revista Annales.

Foucault acrescenta que não lhe parece ser este caminho o efetivamente seguido pelos historiadores nos ultimos anos, uma vez que a oposição entre evento e estrutura, tão acentuada nos textos metodológicos de Braudel, não se constata de modo algum nas pesquisas recentemente publicadas.

Verificou-se como que uma recuperação do evento, através da substituição do evento isolado, válido por si só, graças a sua importância intrinseca, pelo evento em série, e inserido em séries cada vez mais variadas e abundantes:"... foi apertando as extremo o grão do acontecimento, levando o poder de resolução da análise histórica até as mercuriais, aos atos notoriais, ao registros de paroquia, os arquivos pontuários seguidos ano após ano, semana após semana, que vimos desenharem-se, para além das batalhas, dos decretos, das dinastias ou das assembleias, fenômenos maciços de alcance secular ou plurisecular" (ibid., pag. 57).

Evento e serie. Certamente Michel Foucault alude aqui, entre outros, ao trabalho de Pierre Chaunu, Sevelle et l'Atlantique (1550-1650), publicado em 1959, e que pertence àquilo que hoje se donomina história serial, ou seja, uma história que se interessa menos pelo fato individual do que pelo elemento repetido, integral numa serie homogenea suscetivel se sofrer em seguida os processos matemáticos classicos da análise das séries. Evidentemente não é a quantificação - Foucault acentua -, mas sim que "a história, tal como hoje se pratica, não se afasta dos eventos". É que Foucault não pretende, de modo algum, cantonar o evento na curta duração como faz Braudel, e chama a atenção para o fato de os historiadores não considerarem atualmente um evento sem definir a série de que faz parte, sem especificar o modo de análise que esta exige.

Recusar o evento da história tradicional não significa, de modo algum, que se deva recorrer, na ciencia histórica, à noção de estrutura. Para Foucault, as noções fundamentais que utilizam os historiadores são as de evento e série, com o jogo das noções que lhes estão ligadas: regularidade, acaso, discontinuidade, dependência, transformação.

Quer em L'archeologie du savoir, quer em L'ordre du discours, Foucault recusa o rotulo de estruturalista e procura cuidadosamente, sobretudo na primeira obra, distinguir a sua analise de uma autentica analise estrutural chamando atenção para o fato de em Les mots e les choses não ter empregado uma unica vez o termo estrutura. Ora, quer-nos parecer que é precisamente este desejo de divorciar o seu metodo do metodo estrutural que o leva a aproximar-se dos historiadores que fazem história serial quantitativa e a distanciar-se daqueles outros que, como Braudel falam principalmente das estruturas de longa duração.

Contudo, Foucault aproximar-se de Braudel e também de Lévi-Strauss em La pensée sauvage, ao recusar um modelo uniforme de tempo realização. Braudel faz o mesmo quando escreve: "chegamos assim a uma decomposição da historia em planos sobrepostos. Ou, se preferirmos, à distinção, no tempo da historia de um tempo geografico, de um tempo social, de um tempo individual. "(Ecrits sur I'histoire, Paris, 1969, pag. 13) De uma maneira mais rigorosa, Levi Strauss depois de analisar o "código" da historia, a cronologia, aponta igualmente para destruição de uma temporalização unica: "A Historia é um conjunto descontinuo formado de dominios da historia, cada um dos quais é definido por uma frequencia propria, e por uma codificação diferencial do antes e do depois. Entre as datas que compõem uns e outros, a passagem é tão impossível como entre numeros naturais e numeros irracionais. Mais exatamente: as datas proprias a cada classe são irracionais em relação a todas as das outras classes. "(Lapensée suavage, pag. 344).

Em L'ordre du discours, tal como nas obras anteriores, Foucault procura estabelecer uma aproximação entre a sua analise do discurso e as analises históricas, articular sua arqueologia com o trabalho efetivo dos historiadores e não com aquilo a que os filosofos costumam muito vagamente, muito sartrianamente, denominar história. Basta recordar aqui o célebre capitulo de La pensée sauvage em que Lévi-Strauss combate a concepção "mistica" de historia, a de Sartre em particular. Tanto Foucault como Levi-Strauss têm o cuidado de distinguir cuidadosamente os estudos históricos, a produção real dos historiadores, de uma certa filosofia da história que nada tem que ver com a ciência a cada momento construida e renovada.

As paginas iniciais de L'archeologie du savoir fazem exatamente um resumo da situação atual da ciencia histórica, aludindo aos instrumentos de trabalho fabricados pelos proprios historiadores ou por eles recebidos de outras areas: "modelos do crescimento economico, analise quantitativa dos fluxos de trocas, perfis dos desenvolvimentos e das regressões demograficas, estudo do clima e das sua oscilações, localização das constantes sociológicas, descrição dos ajustamentos técnicos, da sua difusão e da sua persistência". Foram esses trabalhos que permitiram a distinção, no campo da história, de camadas sedimentares diversas.

Multiplicaram-se os níveis de análise: cada um deles com suas rupturas especificas, com o seu recorte proprio. São histórias diferentes que surgem nos tempos atuais: histórias das vias maritimas, histórias do trigo ou das minas de ouro, historia das secas e da irrigação, história do equilibrio entre a fome e a proliferação. São outras as interrogações metodológicas que estratos se devem isolar uns dos outros? Que tipos de série se devem instaurar? Que critérios de periodização se devem adotar para cada uma delas? E - esta é ama das interrogações mais sérias - que sistema de relações pode ser descrito de uma série para outra? Que séries de séries podem ser estabelecidas?

Ora a problematica de Braudel encontra-se envelhedida em relação a todas essas questões. O prefácio de La Mediterranée et le monde mediterranéen a l'époque de Philippe II (1ª edi. 1946; 2ª edição, 1966) apresenta apenas 3 camadas sedimentares, sobrepostas, e esta sobreposição é suficiente para que cada uma ilumine as outras. O estrato da denominada historia eventual surge-nos diferente na obra de Baudel apenas porque tem como pano de fundo os outros dois estratos. Não há uma verdadeira ruptura metodológica, apenas um enriquecimento da historia tradicional. Braudel se encontrava muito preso à noção de uma historia total e receava o discontinuo de uma historia serial, discontinuidade que nada tem de assustadora para um Lévi-Straus ou um Michel Foucault: "Espero que não me censurem as minhas ambições demasiado vastas, o meu desejo e a minha necessidade de ver em grande. E historia não está talvez condenada a só estudar jardins bem rodeados de muros", lemos no célebre prefácio de Braudel.

Foucault aborda esse problema quando afirma: o tema e a possibilidade de uma história global começam a desaparecer e vemos esboçar-se o desenho, muito diferente, daquilo que se poderia chamar uma história geral" (L'Archeologie du savair, pag. 17). A historia global, que é ainda a de Baudel, parte da seguinte pressuposição: que entre todos os eventos de uma area espaço-temporal bem definida, entre todos os fenomenos cujo vestigio se encontrou, se deve poder estabelecer um sistema de relações homogeneas. Não quer isso dizer que a historia nova, ao problematizar as series, os recortes, os limites, os desniveis, as especificidades cronologicas, os tipos possiveis de relação, procure obter uma pluralidade de historias justapostas e independentes uma das outras; ou que ela procure apenas assinalar entre essas histórias diferentes, coincidencias de datas, ou analogias de forma e sentido. O pluralismo histórico assusta com seu pluralismo metodologico, com seu carater atomista mas nada resolve prendermos-nos a uma historia global à maneira de Braudel, que não problematiza o tipo de relações entre as camadas históricas por ele distinguidas. Ora a tarefa daquilo a que Michel Foucault chama uma historia geral é determinar que forma de relação pode ser legitimamente descrita entre as diferentes séries.

É evidente que a historia nova encontra no seu caminho um certo numero de problemas metodologicos, que convém aqui referir, embora não seja pretensão nossa, nem de Foucault, resolvê-los desde já. O primeiro diz respeito à constituição de corpus coerentes e homogeneos de documentos, corpus abertos ou fechados, finitos ou indefinidos, e este problema esta relacionado com um outro: aquilo que Foucault denomina o questionamento do documento.

O Documento. É certo que a disciplina que se denomina história sempre se serviu de documentos, sempre os interrogou, se interrogou sobre eles. O historiador pretendia saber não só o que os documentos queriam dizer, mas também se dizia a verdade, se eram sinceros ou falsos, bem informados ou ignorantes, autênticos ou alterados. Portanto, o questionamento do documento fazia parte da atividade do historiador. Resta saber com que atitude e se essa atitude se modificou nos ultimos anos. Ao interrogar os documentos, o historiador pretendia reconstituir, a partir do que eles diziam, o passado de que tinham emanado. Como escreve Foucault "o documento era sempre tratado como a linguagem de uma vez agora reduzida ao silencio - o seu vestígio fragil, mas felizmente de cifrável" (L'Archeologie du savoir, pag. 14). Espécie de trampolim para algo que estava para além dele, instrumento mas não objeto de análise por si mesmo, o documento era utilizado mas não era verdadeiramente analisado pelo historiador.

Ora essa atitude mudou, ou pelo menos está em vias de mudar, e cremos, ao contrario de Foucault, que esta mutação se deve em grande parte à maneira como o método estrutural encara o texto. Não queremos com isso dizer que a história se tenha tornado estruturalista, pois até agora, só em areas muito restritas a análise estrutural tem sido aplicada com eficácia, como se pode ver pelo número da revista Annales (maio-agosto de 1971) dedicado ao problema história-estrutura. O método estrutural ensinou pelo menos uma coisa ao historiador: a trabalhar o documento do interior, sem pensar logo de início numa realidade exterior a ele. Como diz Foucault, "o documento não é mais para a história essa materia inerte através da qual ela tenta reconstituir o que os homens fizeram ou disseram, o que se passou e de que resta apenas o sulco: ela procura definir no próprio tecido documental unidades, conjuntos, séries, relações" (ibid. pág. 14).

A mudança de atitude do historiador é sintetizada com a seguinte formula: "nos nossos dias, a historia é o que transforma os documentos em monumentos" e tudo se passa como se a historia tendesse hoje para a arqueologia, ou seja, para a descrição intrinseca do monumento.

O segundo problema metodológico que a história nova tem de enfrentar é, como diz Foucault, o estabelecimento de um principio de escolha, "conforme se pretende tratar exaustivamente a massa documental, praticar uma amostragem segundo métodos de levantamento estatistico ou determinar previamente os elementos mais representativos" (ibid. pag. 19).

Estruturalismo. E finalmente o problema mais amplo, o da definição do nivel de analise dos elementos que para ele são pertinentes. No material estudado podemos escolher as indicações numericas; as referências - explicitas ou não - a eventos, instituições ou práticas; as palavras empregadas, com as suas regras de emprego e os campos semanticos que elas desenham ou então a estrutura formal das proposições e os tipos de encadeamento que as unem. Importa igualmente determinar as relações que permitem caracterizar um conjunto, pois podemos deparar com relações de vários tipos e o erro de muitos historiadores consiste precisamente em procurar um tipo unico de relações, quando afinal existem relações numéricas ou lógicas, relações funcionais, causais, analógicas, ou relações de significante e significado.

Toda essa problemática pertence hoje ao campo metodológico da história, como muito bem acentua Foucault. Alguns desses problemas foram sugeridos por aqueles que surgem em outros dominios, a linguistica, a etnologia, a analise literária, a mitologia, e poderiam talvez caber sob a denominação comum de estruturalismo. Mas a problemática de inspiração estruturalista não ocupa de maneira nenhuma a parte mais considerável daquele campo; ela surgiu do campo da própria história, principalmente na área da história economica devido às dificuldades que esta apresentava.

Estamos totalmente de acordo com Foucault quando este afirma que não se pode falar de uma "estruturação" da ciência histórica, mas aqui cabe-nos fazer uma observação: uma coisa é uma ciência se preocupar com estruturas e outra coisa é aplicar o método estrutural tal como ele tem sido aplicado noutras ciências. Quando Jacques Le Goff se inspira na analise estrutural que Propp faz dos contos maravilhosos para analisar a lenda medieval de Melusina, não há duvida de que o historiador está aplicando o método que se mostrou eficaz em outra area e neste sentido pode-se falar de uma estruturalização da ciência histórica, pelo menos naquela area que costuma designar-se como história da cultura. Mas quando Pierre Chaunu fala de "estruturas geográficas" ou quando Pierre Vilar analisa a noção de estrutura em história (Usos e sentidos do termo estrutura, S. Paulo, 1971) cremos que não se pode pensar em termos de estruturalização. Como diz Roland Barthes no ensaio "L" activité structuraliste" (Essais critiques, Paris, 1964) o termo estrutura é já antigo, "todas as ciências sociais recorrem a ele com muita frequência e o uso da palavra não pode distinguir ninguém", ou antes, não basta empregar o termo estrutura para se ser estruturalista. No que se refere à história, Braudel, que o emprega, está mais distante do metodo estruturalista do que Foucault que, na sua arqueologia jamais o usa, e que até dá preferência ao conceito que em geral aparece como seu oposto: o de evento.




Tópico: Michel Foucault.

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