quarta-feira, 11 de maio de 2011

De pratarias e escombros: festividades e declínio da Irmandade do Rosário dos Pretos de Rio de Contas






De pratarias a escombros: festividades e declínio da Irmandade do Rosário dos Pretos de Rio de Contas (1762-1920)

por Felipe Augusto Barreto Rangel


Sobre o autor[1]

Introdução – a Villa do Rio das Contas: formação, mineração e escravidão

Desde o início do século XVIII algumas regiões da América portuguesa entraram em declínio. A agricultura, que era base da economia até então, não conseguiu mais sustentar-se devido, principalmente, às produções concorrentes de gêneros tropicais cultivados nas Antilhas, dentre outros aspectos. Entre as saídas encontradas pela Coroa portuguesa para resolver este impasse destaca-se o investimento nos paulistas para o desbravamento dos sertões em busca dos tão almejados metais preciosos.[2]

A entrada pelo interior da colônia e o conseqüente encontro do ouro transformou a estrutura dos núcleos populacionais. Na segunda metade do século XVIII inúmeras novas vilas são fundadas. Na Bahia é a partir de 1681 que se iniciaram as entradas pelo interior seguindo pelo Rio Paraguaçu. Segundo Darcy Ribeiro,

(...) a mineração de ouro (1701-80) e, depois, a de diamante (1740-1828) vieram alterar substancialmente o aspecto rural e desarticulado dos primeiros núcleos coloniais. Sua primeira conseqüência foiatrair rapidamente uma nova população [...] para uma área do interior, anteriormente inexplorada.[3]

A formação da rede urbana reforça uma série de circuitos de sociabilidades, especialmente no que concerne ao grupo de africanos e afro-brasileiros. A presença negra nas cidades mostrou-se como um fator altamente favorável para o desenvolvimento de diversas estratégias visando a extinção do cativeiro e a preservação e manutenção dos complexos culturais de origem e também os variantes formados a partir dos novos contextos e situações.

No início do século XVIII, mais precisamente no ano de 1715, um grupo de ex-escravos se instalou nas margens do Rio de Contas Pequeno situado na região mais alta da Chapada Diamantina. Formaram um pequeno povoado chamado de “Pouso dos Creoulos” ou ainda “Descanso dos Creoulos”.

Este povoado era um lugar de passagem e pouso de viajantes, vindos de Goiás e das Minas Gerais, procurando encurtar o caminho ao transitar para o Porto de Nossa Senhora da Cachoeira e para a capital da Província da Bahia e vice-versa.[4]

Em 1710 foram encontrados os primeiros veios auríferos atraindo gente de toda a região incluindo bandeirantes, garimpeiros e mineradores. Segundo Celso Furtado o volume da corrente migratória dentro do Império português para as regiões auríferas no século XVIII foi tão intenso a ponto de haver grande alarme em Portugal. A Coroa acabou tomando medidas para dificultar as movimentações de migrantes.[5] Com o aumento da população na região outros arraiais foram surgindo como o arraial de Santo Antônio do Mato Grosso que foi elevado à qualidade de freguesia em 1718. Os povoados desta região tinham forte influência escrava. Vale ressaltar ainda que neste período na Província da Bahia existiam apenas 20 freguesias.

A extração de ouro foi a grande atividade econômica da região, mesmo que por curto espaço de tempo. “Entre os anos de 1724 a 1800 os registros da Casa da Câmara da Comarca de Rio de Contas demonstram que foram enviadas neste período para Portugal 62.216 oitavas de ouro de 23 quilates.”[6]

A vida numa região de mineração mostrava-se bem mais rica de possibilidades do que nas antigas cidades coloniais e nas grandes fazendas de açúcar, enfocando principalmente a questão dos negros forros ou escravos e de brancos pobres. Diferente da estrutura da sociedade açucareira a mineração permitia maiores possibilidades de ascensão social. A posse de terras, por exemplo, não era necessária para se garimpar. E também a própria forma como se organizava o trabalho permitia uma maior circulação de pessoas num meio social mais complexo. [7]

O grande florescimento de vilas neste período como desdobramento da extração dos metais preciosos gerou novos modos de vida que acabaram sofrendo grandes mutações com a crise do declínio da exploração. Na Vila de Rio de Contas, então transformada em sede da Comarca por Provisão Régia de 02 de outubro de 1745, não foi diferente. Com a estagnação da mineração os padrões de vida mudaram e boa parte da população passou a exercer profissões ligadas ao artesanato como trabalhos em couro, madeira e a fundição de outros tipos de metais.

O catolicismo colonial: estruturas e devoções, irmandades e sociabilidades

O catolicismo português importado para a América sofreu uma série de adaptações e ressignificações de preceitos pelas próprias disposições contextuais. A precariedade do Império português forçava a união entre a Coroa e a Igreja num só sistema de domínio perante as colônias. A Igreja e a Coroa trabalharam juntas numa legitimação recíproca em prol da manutenção dos territórios conquistados. Estas ligações são perceptíveis desde a formação das grandes estruturas, como o Padroado Régio, até as menores como o processo de instalação das paróquias nas freguesias no interior.

Portugal dominava pelo número de igrejas. Utilizava o poder cristão, por ser justamente uma instituição supranacional, facilitando como forma de controle. A Inquisição também era um importante braço de domínio religioso e social. As paróquias figuravam como células menores do Império onde era possível se manter um controle mais diluído e próximo.

Apesar de toda esta super estrutura de domínio a falta de clérigos complicava a ortodoxia cristã das colônias. Os padres, tidos como trabalhadores da fé, eram poucos e geralmente se preocupavam mais com os interesses econômicos e sociais que propriamente religiosos. Alguns padres que habitavam os engenhos, por exemplo, eram submetidos às vontades senhoriais que moldavam a fé de acordo com seus interesses pessoais.[8]

Esta frouxidão religiosa, somada aos inúmeros cultos de origem africana e indígena, possibilitou a formação de um grande complexo cultural moldado de acordo com as necessidades cotidianas dos colonos. Santos, orações, feitiços, cultos, magias e irmandades foram muitas vezes unidas gerando o que chamamos hoje de sincretismo.[9]

Tratando da devoção aos santos no período colonial, Stuart Schwartz aponta que,

O culto os Santos era particularmente importante – São Gonçalo para encontrar marido, Santa Barbara para proteger das tempestades, Santo Antônio para se obter objetos perdidos – cada qual com poderes determinados. [...] Os engenhos eram erguidos sob a invocação dos Santos, e muitos possuíam capelas. [...] Contudo, a presença de igrejas não era necessariamente um indicador da influência da religião. Nenhuma das capelas acima mencionadas contava com um cura residente.[10]

Um caso especial que evidencia bem esta questão das adaptações contextuais são as irmandades e festas religiosas promovidas pelos africanos e seus descendentes. Muitas vezes, em paralelo ao calendário das festas católicas, existiam manifestações de negros, como as congadas, reinados e festejos voltados para santos negros.[11] Ao que alguns historiadores indicam estas festividades eram toleradas por alguns senhores entendendo-se que a pura repressão aos atabaques poderia desencadear problemas bem maiores como rebeliões.

A realização destas festas figurava como estratégias tanto por parte dos senhores como dos negros forros ou livres. Os negros utilizavam este espaço como momento de preservação de determinados cultos, camuflados em roupagens católicas, e também como momento de sociabilização com seus semelhantes ou até de conspiração contra seus senhores. Aos senhores, em determinados momentos, a liberação das festas negras servia para apaziguar e aliviar os ânimos rebeldes cultivados pelo trabalho exaustivo.

As irmandades religiosas, principalmente as de negros e crioulos, se apresentavam basicamente como estruturas de defesa e proteção contra o mundo do cativeiro. Além das funções propriamente religiosas, como as festas, os funerais e procissões, as irmandades, principalmente as “dos Homens Pretos”, forneciam auxílios de outras ordens como alforrias de irmãos e assistência aos mesmos quando enfermos.

João José Reis aponta que as irmandades não combatiam diretamente a escravidão enquanto sistema, mas abriam diferentes espaços de convivência dentre as brechas do referido sistema.[12] Mary Del Priore também afirma que as irmandades não lutavam pelo fim da escravidão nem montavam estratégias visando este fim. Antes, tentavam aliviar os malefícios deste sistema promovendo a união e a sociabilização dos diferentes seguimentos, chegando em alguns casos a anestesiar os instintos de rebelião de alguns grupos.[13]

A irmandade era uma espécie de família ritual, em que africanos desenraizados de suas terras viviam e morriam solidariamente. Idealizadas pelos brancos como um mecanismo de domesticação do espírito africano, através da africanização da religião dos senhores, elas vieram a constituir um instrumento de identidade e solidariedades coletivas.[14]

As irmandades configuraram-se como o espaço onde era possível se socializar e criar um sistema de auxílios de diferentes ordens. As irmandades de Nossa Senhora do Rosário[15] dos Homens Pretos merecem especial destaque, sendo uma das associações mais populares do período colonial brasileiro. A primeira a ser fundada na colônia data de 1640 na cidade do Rio de Janeiro e a primeira, documentada e estudada, da Bahia foi fundada em Salvador em 1796.

A igreja do Rosário dos Pretos: a irmandade, seus festejos e seu declínio

Na cidade de Rio de Contas existiam três igrejas católicas. A igreja Matriz do Santíssimo Sacramento localizada na praça principal, a igreja de Senhora Santana e a igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos localizada anteriormente no Largo do Rosário. Segundo alguns moradores a cidade foi planejada e um dos principais indícios que comprovam esta idéia é a posição alinhada em que se localizavam as referidas igrejas, além da amplitude das principais ruas. Esta proposição difere do perfil arquitetônico das cidades coloniais que tiveram um crescimento desordenado apresentando casarões amontoados e ruas estreitas e tortuosas.

Não existe uma data precisa quanto a construção da Igreja do Rosário, nem da instalação da Irmandade de mesmo nome na referida igreja. A única referência documentada que apresenta a data mais longínqua da existência de ambas é o testamento/inventário de Antônia Barboza de Souza. Esta, uma preta forra, irmã do Rosário, pediu autorização aos órgãos competentes para ser enterrada na capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. O documento comprova que em 1762 já existiam tanto a capela como a irmandade. Dentre as informações fornecidas no documento é possível se reconstruir um pouco da vida religiosa da Villa do Rio das Contas.

No desenrolar do texto a preta forra Antônia pede para ser enterrada na igreja da irmandade e o capelão da igreja de Senhora SantAnna João Mello Danttas Cabral, diz,

(...) certifico em como no dia 20 do / mez de (abril) do prezte anno, encomendei; acompanhei; disse Mi / ssa de corpo preste pella alma da defunta Antonia Barbosa / e dei sepultura na capella de N. Snra do Rosario desta (Villa) (...)[16]

Parte das despesas do enterro é descrita no mesmo documento que aponta, “(...) sete oitavas de ouro em pó, pro / cedidas de hu habito, que me comprou pa nella amorta / lhar o corpo da dta defunta (...)”[17] e ainda “(...) duas oitavas de ouro do alu / guel do esquife da Irmandade da Sra Sa Anna dessa / villa pa neste ter o corpo da defunta Antonia Barboza (...)”[18]

Estas informações demonstram não só as obrigações espirituais mas temporais para com os irmãos. O citado capelão ficou encarregado, por “(...) quatro oitavas de ouro(...)”[19] de todo o cerimonial religioso que a ocasião exigia. E ainda a irmandade, representada pelo Intendente, o Sr. José Ferreira Dessa, se encarrega de providenciar os apetrechos mortuários como a mortalha e o esquife. A presença do aluguel do esquife da Irmandade da Senhora Santana é um fato bem interessante, pois evidencia um relacionamento, mesmo que financeiro, entre as irmandades da cidade.[20]

A dita Irmandade do Rosário, apesar da nomenclatura que fazia referência direta aos homens negros, permitia a entrada de brancos, como atesta uma das notícias do jornal O Cinzel que circulou na cidade durante os anos de 1912 a 1919 e depois de interrompida sua circulação volta a ativa de 1924 a 1927. O referido jornal aponta que a dita Irmandade do Rosário recebia “(...) em / seu seio, com o mesmo carinho se / res inteiramente antagônicos: senhores e escravos.” E acrescenta mais a frente que “(...) a Egreja por / intermédio daquela Irmandade, abria-lhe os braços, levando às suas almas a / Esperança de recompensa celeste”[21].

Os jornais que circularam na cidade (O Cinzel e O Riocontense) figuram como as principais fontes para a construção deste trabalho, uma vez que trazem algumas notícias que descrevem minuciosamente algumas das atividades da Igreja do Rosário. Vale ressaltar também o cuidado que se deve ter com este tipo de fonte considerando o tipo de discurso por ela veiculado. Por não ser uma pesquisa muito aprofundada não tenho propriedade suficiente para questionar eficazmente a veracidade e as subjetividades presentes nos discursos dos jornais. Acrescento apenas que apesar da semelhança do conteúdo e do discurso das notícias os proprietários e redatores d’O Cinzel e d’O Riocontense eram pessoas distintas.

Num dos jornais da cidade, O Riocontense, que circulou durante os anos de 1921 a 1922, traz em seu conteúdo uma das descrições mais ricas sobre a festa do Rosário. Diz ele,

(...) fo / ram celebradas pomposas / festas, em louvor á Virgem / do Rosário, sua Excelsa pa / droeira, em cujas festividades / os respectivos procuradores, / intitulados Rei e Rainha se a / presentaram paramentados / com os competentes man / tos, coroa e sceptro e vi / nham para o templo, onde, / se achava preparado um / throno para elles, acompa / nhados pella musica e gran / de sequito, sendo recebidos / na porta principal da Egreja, / pelo vigário da freguezia. [22]

Ainda sobre a festa O Cinzel acrescenta que,

(...) no / primeiro domingo de outubro se cele / brava a festa. / O Rei e a Rainha, esco / lhidos entre os irmãos quase sempre / representado por creanças eram pompo / samente recebidos no Templo, sendo col / locadas em suas cabeças / ricas coroas de prata e atirados / sobre sua fronte, cartu / chos de ouro em pó. Annualmente re / petia-se este festejo singular (sendo o / ouro substituído por flores e confettis).[23]

Vários aspectos interessantes da festa este trecho revela. Primeiro a existência de um reinado do rosário, típico das festas coloniais. Estes reis eram representados por crianças, o que lança a possibilidade de se poder ingressar menores também nesta irmandade, uma vez que no mesmo trecho diz que o Rei e a Rainha eram escolhidos entre os irmãos. A admissão de crianças neste caso figura apenas como uma hipótese.



Meninos com pedras na cabeça em frente à Igreja do Rosário. A igreja se encontra em avançado estado de destruição. Fotografia encontrada no acervo do Arquivo Público Municipal de Rio de Contas. (sem data)

Dentre as alegorias da festa existiam outros grupos que acompanhavam o cortejo real e também figuras ilustres do período fizeram-se presentes em alguns festejos como afirma D. Maria Brandão dos Reis que foi Rainha da festa em 1905, com 13 anos de idade, pouco tempo antes da igreja entrar em processo de ruína. “(...) o casal teve séquito, com vassalos, e foi saudado pelo senador / José de Aquino Tanajura e pelo Dr. José Vicente, Juiz de Direi / to.”[24]

As atividades eram intensas na Igreja o Rosário e o templo abrigava ainda outros agrupamentos e associações, típicos do século XVIII e também do século XIX. Segundo O Riocontense,

Nessa capella, / fora instituída, nesta cidade / pelo Cônego Procopio José / Rufino, então vigário desta / Freguezia, de saudosissima / memória, a bella festa das / “Filhas de Maria”, uma das / mais lindas e queridas festi / vidades religiosas, hoje cele / brada com a maior sumptuo / sidade e grande pompa, / em todo o mundo christão.[25]

Não se sabe ao certo os motivos que levaram ao fim da irmandade. O desabamento da igreja ocorrido em 1914 talvez seja uma das possibilidades de justificação. A existência de uma igreja era muitas vezes a base de uma irmandade, pois quase todas as atividades eram realizadas neste espaço. Já sem a igreja para realizar os festejos pomposamente, O Cinzel noticia em 1915 a descrição da festa, sem o mesmo vigor de outrora. Nota-se que sem a própria igreja da irmandade os festejos vão perdendo o brilho. Diz ele,

Durante este mez, consagrado pella I / greja á devoção do Rosário, houve na Matriz, todas as noites o terço e hoje / foi celebrada missa festiva á N. S. do Ro / sário, comparecendo grande numero de / fieis e á tarde a Imagem da Excelsa / Virgem sahiu em procissão.[26]

São muitos os questionamentos levantados pela escassez de fontes acerca do que findou primeiro, se a Irmandade ou a igreja. Com base nas poucas informações arrisco sugerir que a irmandade passava por problemas financeiros, o que foi agravando a situação física da igreja resultando no desabamento da mesma. Sem o templo para os cultos a Irmandade vai enfraquecendo até ser extinta totalmente. Ainda segundo os depoimentos de D. Maria Brandão dos Reis e de D. Durvalina da Rocha Santos,

(...) a igreja começou / a desabar por volta de 1909 quando era vigário o Pe. Nogueira. [...] a causa do / desmoronamento da igreja deve ser encontrada na desavença em / ter o Cel. Arlindo Ramos, pessoa de posse que era Juiz da Ir / mandade, e o padre Nogueira. Em decorrência desta desavença, o / Cel. Arlindo Ramos se afastou da Irmandade e as lesões graves / aparecidas por volta de 1909 foram se agravando de tal forma / que a Igreja, não resistindo às fortes chuvas de 1914, desabou.[27]

E acrescentam ainda que, “No entanto, a irmandade ainda tinha certo poder nesta época / pois, todos os sábados, fazia celebrar missa cantada às 9 hs.”[28]

Parte da igreja desabou devido a falta de manutenção e o restante foi demolido por se encontrar em ruínas. “Com o desaparecimento da igreja a Irmandade se / dissolveu, e a prataria do templo e demais pertences foram reco / lhidos à matriz do S. Sacramento. [...] a / Igreja do S. Sacramento, [...] era rica em ouro, enquanto a do Rosário era rica em prata.”[29]

Não se sabe ao certo quais os motivos das desavenças entre o citado Juiz da Irmandade e o vigário local. O fato é que o desentendimento destas duas esferas de poder religioso contribuiu para o desmoronamento da igreja e a dissolução da secular irmandade.

Com isto novas querelas são geradas. No campo sagrado onde se encontrava o antigo templo e os restos mortais de seus irmãos foi construído o primeiro teatro da cidade, o Teatro São Carlos. Construído inclusive com os restos das pedras da Igreja do Rosário.

Este primeiro teatro desabou e, segundo a população devota isto se deu justamente por ter sido construído sob os restos da igreja e de seus mortos, se configurando como uma grande profanação. Não existe documentação que aponte a data de construção do primeiro teatro. A única referencia que é possível fazer é baseada numa notícia d’O Riocontense que registra, em 1921, ainda a existência dos escombros da igreja desabada.[30] Posteriormente um segundo teatro, com o mesmo nome do antigo, acabou sendo construído no mesmo local. Este existe até os dias atuais.

Talvez como uma ironia do destino, ou dos tempos, no mesmo ano em que a Igreja do Rosário desabou O Cinzel publica um comunicado da Delegacia de Higiene apontando que, “(...) é expressa / mente prohibido enterramentos de / corpus nas igrejas e terrenos adjacentes.”[31] Sendo ameaçados os infratores de prisões e multas.

Ao que se pode supor, de uma forma ou de outra, a população teve que acatar as deliberações acerca dos enterramentos, ou pelas punições apregoadas pela lei da Delegacia de Higiene ou por não existir mais o templo sagrado.

Antes da construção do teatro os jornais da cidade noticiaram as problemáticas discussões sobre o que se fazer com as sepulturas expostas, uma vez que não existia mais a igreja nem a irmandade. A idéia inicial do Intendente foi que,

(...) vendo a / difficuldade de reconstruí-la, / tinha a idéia de fazer em to / da a área occupada pella mes / ma, um jardim, devidamente gradeado, ás expensas do / município, e mais tarde se / ria construída nova capella, / no alinhamento das casas, / com a mesma devoção. [...] porque assim ficava / ornado de flores aquelle te / rreno sob o qual se encon / tram diversas sepulturas dos / nossos antepassados.[32]

Ainda na mesma notícia é demonstrada certa simpatia dos devotos (ao menos dos jornalistas!) para com a construção do jardim e depois da nova capela. Existiu até uma justificativa estética:

Ideia sublime e magnífica; / porque de facto esta em / desuso, hoje, nas grandes ca / pitaes e mesmo nas novas / localidades que vão sendo / creadas com mais aperfeiço / amento e obedecendo a es / thetica, as capelas ou egre / jas serem construídas nas / praças e sim no correr das casas, para não tirarem o seu embelezamento.[33]

Segundo as poucas fontes encontradas nem o jardim nem a nova capela foi construída. Dois teatros apenas: um desmoronou, justificando-se por profanação do terreno sagrado, e o outro ainda esta de pé. A antiga Igreja do Rosário desmoronou levando consigo a pompa de suas festividades, de seus Reis e Rainhas pulverizados com pó de ouro, e também de seus cadáveres e de seus irmãos. Restaram apenas na memória documentada nas fotografias e nos periódicos da época as lembranças e vivências de sua Excelsa Padroeira.

Considerações finais

A entrada para o interior da colônia modificou profundamente os hábitos da América portuguesa. As transformações dos grandes sistemas econômicos acabaram por gerar novos núcleos populacionais que fervilhavam em formas de vida mais complexas que as dos antigos engenhos açucareiros. A intensa circulação de pessoas nestes ambientes disseminou, diluiu e contextualizou antigas práticas do Velho Mundo.

A Igreja marcou presença nos domínios coloniais. Os diversos setores leigos souberam montar estratégias de convivência que adequavam o sagrado harmoniosamente ao dia-a-dia dos trópicos. A Coroa portuguesa soube aproveitar bem as potencialidades religiosas em suas empreitadas de dominação submetendo os colonos em nome da fé.

Os colonos também souberam modificar o sistema ao seu favor. Os africanos e seus descendentes, em especial, camuflaram uma série de práticas oriundas de seus contextos de origem escondendo em roupagens religiosas estratégias e desejos de libertação.

As irmandades e festas religiosas configuraram-se como campos de poder que permitiam ensaiar e representar desejos, amortecendo o desgastante cotidiano. Pela fé tudo era justificado, esta era a norma religiosa.

A Irmandade do Rosário dos Pretos da Villa do Rio das Contas não fugiu a esta dinâmica. Promovendo seus festejos, aspergindo pó de ouro pela fronte da realeza, acabava contemplando os anseios de todos os seus irmãos, vivos e mortos, transformando a dura realidade. Era o momento de nivelar as diferenças, de festejar, de se socializar, colonialmente.


Fontes:

Inventário com testamento de Antônia Barboza de Souza, pretta forra. Arquivo Público Municipal de Rio de Contas. (1765-1766) E 01 – P03 – Cx 16.

Jornal O Cinzel, ano III, 31 de outubro de 1915, quarta-feira, no 20.

Jornal O Cinzel, ano II, 4 de outubro de 1914, domingo, no 16.

Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, quarta-feira, no 3.

Processo de levantamento do tombamento de Rio de Contas (IPHAN) 1972. Arquiteto Fernando Leal.


Referências Bibliográficas:

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WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil Colonial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.


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[1] Graduando do curso de Licenciatura em História na Universidade do Estado da Bahia – UNEB – CAMPUS XIII; augustobarreto1@hotmail.com.br

[2] FURTADO, Celso. Formação econômica da Brasil. 34 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

[3] RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Saulo: Companhia das Letras, 1995. P. 152.

[4] ARAKAWA, Maria de Lourdes Pinto de. As Minas do Rio das Contas. 1 ed. Salvador: a autora, 2006. P. 26.

[5] FURTADO, Op. Cit., p. 119.

[6] ARAKAWA, Op. Cit., p. 34.

[7] FURTADO, Op. Cit., p. 120.

[8] SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. P. 239 e 262.

[9] Segundo Vainfas sincretismo é o “(...) cruzamento de idéias e doutrinas diferentes [...] se caracterizaria, fundamentalmente, como o resultado da combinação de crenças de natureza diversa, amalgamadas de maneiras variadas, conforme as religiões postas em contato.” VAINFAS, Ronaldo. (org) Dicionário do Brasil colonial (1500-1808) Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 532.

[10] SCHWARTZ, Op. Cit., p. 239

[11] “Congos ou congadas eram autos populares, de origem africana, mas já diferenciados, que ocorriam não apenas no ciclo de Natal, mas em outras datas comemorativas, geralmente de devoções religiosas dos negros. Comum a sudaneses e bantos, a congada tinha como elementos principais a coroação do rei do Congo, préstitos, embaixadas e danças guerreiras. [...] Nos desfiles haviam imagens e homenagens aos santos protetores dos negros, cuja devoção se concentrava em quatro: N. S. do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Santo Antônio Preto.” WEHLING, Arno & WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil Colonial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. P.256.

[12] REIS, João José. Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 2, no 3, 1996, p. 7-13. P. 15.

[13] PRIORE, Mary Lucy Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo: Brasiliense, 2000. P. 78.

[14] REIS, Op. Cit., p. 4.

[15] “Inicialmente, a devoção à Santa Nossa Senhora do Rosário surgida em Portugal nos séculos XV e XVI, e adorada apenas por brancos, foi ganhando popularidade entre os negros que já se agrupavam nas irmandades, ou seja, confrarias, associações ou confederações de irmãos. Através de lendas acreditava-se que a santa tinha uma certa simpatia pelos negros, contada através de lendas como a aparição da imagem da santa no mar, que não teria saído das águas com a homenagem feita pelos brancos e sim com a dos negros. [...] No Brasil a devoção dos negros a esta santa foi crescendo cada vez mais levando a difusão da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos que serviria como apaziguadora para aliviar os sofrimentos infligidos pelos brancos.” SOUZA, Cristiane Pereira de. & VALENÇA, Vivianne Ribeiro. Sincretismo da Irmandade Rosário dos Homens Pretos em Recife no período colonial século XVII. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v.9, n.24, set./out.2008. p. 02-03.

[16] Inventário com testamento de Antônia Barboza de Souza, pretta forra. Arquivo Público Municipal de Rio de Contas. (1765-1766) E 01 – P03 – Cx 16. Folha 10.

[17] Inventário com testamento de Antônia Barboza de Souza, folha 12.

[18] Inventário com testamento de Antônia Barboza de Souza, folha 13.

[19] Inventário com testamento de Antônia Barboza de Souza, folha 10.

[20] Sobre as diferentes formas de relacionamento entre irmandades distintas ver: TAVARES, Mauro Dillman. Irmandades, Igreja e devoção no sul do Império do Brasil. São Leopoldo: Oikos, 2008.

[21] Jornal O Cinzel, ano III, 31 de outubro de 1915, no 20, folha 1.

[22] Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, no 3, folha 1.

[23] Jornal O Cinzel, ano III, 31 de outubro de 1915, no 20, folha 1.

[24] Processo de levantamento do tombamento de Rio de Contas (IPHAN) 1972. Arquiteto Fernando Leal. P.33.

[25] Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, no 3, folha 2.

[26] Jornal O Cinzel, ano III, 31 de outubro de 1915, no 20, folha 1.

[27] Processo de levantamento do tombamento de Rio de Contas (IPHAN) 1972. Arquiteto Fernando Leal. P.34.

[28] Processo de levantamento do tombamento de Rio de Contas (IPHAN) 1972. Arquiteto Fernando Leal. P.34.

[29] Processo de levantamento do tombamento de Rio de Contas (IPHAN) 1972. Arquiteto Fernando Leal. P.34.

[30] Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, no 3, folha 2.

[31] Jornal O Cinzel, ano II, 4 de outubro de 1914, no 16, folha 2.

[32] Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, no 3, folha 2

[33] Jornal O Riocontense, ano I, 31 de agosto de 1921, no 3, folha 2

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Manoel Messias Pereira

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