quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Poraimos ou o Devoramento dos Povos Ciganos: Uma história sobre o Holocausto

pintura de Van Gogh








Poraimos ou o Devoramento dos Povos Ciganos: uma História sobre o Holocausto.



por Josineide Cordeiro da Silva





Sobre a autora[1]



“Assim sendo, a evolução milenar do conhecimento histórico parece delimitada pelo aparecimento de dois princípios, dos quais cada um marcou uma direção. O primeiro vem dos gregos e diz que a História é conhecimento desinteressado e não lembranças nacionais ou dinásticas; o segundo, de nossos dias, afirma que todo fato é digno de História. Estes dois princípios decorrem um do outro; se estudamos o passado por simples curiosidade, o conhecimento recai sobre o especifico, pois ele não tem nenhuma razão para preferir uma individualidade a outra.” (VEYNE, Paul Marie. Como se Escreve a História. Brasília: Universidade de Brasília, 1998)



Esquecidos pela Escrita da História



Segundo Diehl, o historiador ao elaborar a sua narrativa, escolhe os elementos que pretende usar “varrendo” para baixo do tapete tudo aquilo que não favorece a sua narrativa[2]. O que nos leva a pensar sobre o que as Histórias que lemos, estudamos e analisamos não nos contam.



No decorrer da História várias perspectivas diferentes levaram à campos de estudos diferentes, fossem econômicos, políticos, sociais, culturais entre outros. O campo de estudo cultural nos levou a estudar, conhecer e escrever acerca da História dos excluídos, mas ainda assim, hoje, muitas histórias ainda não foram contadas, como exemplo, citamos a História dos Povos Ciganos, que embora esteja ganhando aos poucos o interesse de alguns historiadores, permanece à sombra dos escritos históricos.



Desde seu surgimento, ou melhor, desde o momento em que foram percebidos no mundo, os ciganos têm sido excluídos das sociedades humanas, e por consequência, quase excluídos da historiografia, uma prova disso é a pouca documentação existente acerca destes povos, uma vez que a única fonte certa na qual podemos encontrar relatos sobre eles são os documentos policiais.



O que nos leva a perguntas que não conseguimos entender ou responder: Seriam todos os ciganos ladrões ou desobedientes da ordem pública? Por que ficaram de fora da História documentos relativos às suas migrações? Por que não contamos acerca das Políticas Anticiganas do passado e do presente? Por que não temos o costume de contar a História do seu Holocausto?



Os povos do Holocausto



No início do século passado, o mundo enfrentou duas Grandes Guerras Mundiais, tais conflitos de uma forma que não convém discutir agora, estavam conectados. Em 1914, a primeira Guerra Mundial eclodiu dividindo os países europeus em dois blocos, e no final do conflito a Alemanha foi um dos países responsabilizados pela Guerra. Determinada a pagar uma alta dívida e a não mais possuir exércitos, esse país se encontrava humilhado, derrotado e enfraquecido política e economicamente.



Foi nesse contexto geral que Adolf Hitler chegou ao poder, iniciando o Terceiro Reich alemão, decidido a retomar discussões acerca da “Pureza Racial Ariana” e culpando os judeus pelos males do país, ambas as questões já eram antigas na Alemanha, antes mesmo de sua unificação em 1870, quando ainda não possuía este nome e nem as organizações social, cultural e política que surgiram após.



Hitler com o apoio de seu partido, polícia e exército deu início a concretização da perseguição e “Solução Final” que ele tinha em mente para os judeus, o que no decorrer da Segunda Guerra, que se iniciou quando este já se encontrava no governo da Alemanha, culminou no Holocausto.



Nos dias atuais, sessenta e seis anos após a Segunda Grande Guerra Mundial, ao pensar em Holocausto, muitos estudiosos e leigos pensam apenas nos judeus, é verdade que cerca de seis milhões de judeus foram exterminados nos campos de concentração alemães, mas ao lado dos judeus estiveram ciganos, poloneses, homossexuais e pessoas deficientes. Segundo Frans Moonen, aproximadamente quinhentos mil ciganos morreram nos campos de concentração durante a Segunda Guerra[3].



Se a situação dos judeus na Alemanha era complicada, o que podemos dizer de povos que nem eram vistos como tais, pois os povos ciganos eram vistos como pessoas doentes e sem nenhuma utilidade para a sociedade alemã[4]. Segundo Dwork e Pelt, as vigorosas medidas nazistas para resolver as questões judaicas acabaram por transbordar para os cerca de vinte e seis mil Sinti e Roma (povos ciganos) que viviam no Terceiro Reich[5].



Diferentemente dos judeus que no início do século XX desfrutavam de algum benefício ou prosperidade na Europa, os povos ciganos nunca foram aceitos, e nem receberam qualquer tipo de ajuda, viveram sempre renegados e sendo expulsos de quaisquer locais, nômades por uma questão de falta de território. Aos ciganos era vetado qualquer tipo de envolvimento com os povos europeus.



É verdade que os judeus sofreram vários preconceitos e problemas na Alemanha antes mesmo da ascensão de Adolf Hitler ao poder, no entanto, ainda assim, os judeus conseguiram realizar casamentos, se envolver e praticar atividades comerciais remuneradas neste país, enquanto os ciganos, só por serem ciganos eram casos de polícia[6].



As medidas nazistas, entretanto, ultrapassaram as diferenças étnicas e culturais e perseguiram também alemães que não se encaixassem nos modelos de perfeição ariana e que praticassem conduta homossexual, fossem homossexuais, bissexuais ou heterossexuais. Sobre os deficientes físicos e os homossexuais as fontes de pesquisa na época do Holocausto são ainda mais escassas que as fontes sobre os ciganos. Segundo Dwork e Pelt:



“[...] cerca de 10 mil homens acabaram em campos de concentração, onde eram assinalados com triângulos cor-de-rosa, para que os guardas, kapos e internos os vigiassem e não os deixassem satisfazer suas necessidades eróticas.” (DWORK & PELT. 2004:121)



Como vimos à perseguição nazista durante a Segunda Guerra Mundial, não esteve restrita apenas aos judeus, embora estes tenham sido o grande foco da perseguição. Não propomos aqui que se deixe de escrever acerca do Holocausto judeu, mas que escrevamos, também, sobre as outras vítimas do nazismo, sendo assim, nos incumbimos neste artigo a tratar acerca do Poraimos, ou seja, o devoramento dos povos ciganos durante a Segunda Guerra.



Os Ciganos, quem são e de onde surgiram?



A palavra “cigano” é um termo genérico utilizado para denominar pelo menos três grandes grupos de povos: os Rom ou Roma, os Sinti e os Calon ou Kalé. Ambos os grupos se subdividem em grupos menores com denominações próprias. Cada grupo possui especificações com relações à língua, cultura, comportamento, atividades, entre outros fatores, no entanto, são chamados de ciganos e tratados com um enorme preconceito em todo mundo.



A origem destes povos é tema de várias discussões que ao longo do tempo ajudou a formular várias teorias, uma das mais aceitas na atualidade, defende a origem indiana dos ciganos. Um estudante húngaro por volta de 1753 encontrou semelhança entre as línguas ciganas e o sânscrito, a partir de então, os lingüistas passaram a estudar a questão. Além do estudo da língua, comparações biológicas e análises culturais tentaram, de diferentes formas, identificar sem êxito absoluto, a origem dos ciganos.



O que podemos afirmar é que os ciganos, ou povos que originaram estes, já eram citados em documentos do século XI, como exemplo, segundo Moonen:



“Um dos documentos mais antigos é o de um monge grego, segundo o qual, no ano de 1050, o imperador de Constantinopla (hoje Istambul, na Turquia), para matar uns animais ferozes, solicitou ajuda de adivinhos e feiticeiros chamados Adsincani.” (MOONEN. 2008:7)





Assim, a existência de ciganos no Oriente pode ser comprovada através de manuscritos antigos de monges, desde o século XI. O estudo sobre a chegada destes povos no Ocidente está relacionado ao que os ciganólogos chamam de Ondas Migratórias. A primeira Onda Migratória teria ocorrido no século XV, quando se espalharam notícias acerca de viajantes exóticos[7].



Desde seu surgimento na Europa os ciganos passaram a ser visto como ladrões, arruaceiros, imundos, ou seja, um problema a ser eliminado, em prol da higiene e segurança públicas. França, Holanda, Portugal, Espanha, Alemanha, entre outros países, possuem políticas anticiganas há séculos, na tentativa de expulsar os ciganos de seus territórios.



As políticas anticiganas proibiam o casamento entre ciganos e pessoas locais, proibiam que os ciganos se misturassem a população ou exercessem atividades comerciais, entre várias outras proibições que dificultavam e impossibilitavam a existência deles na região. Para além de disto como eram vistos como ladrões, independentemente de que cada indivíduo já tivesse furtado ou não, eles tinham a polícia sempre em seu encalço. A situação dos ciganos não melhorou com o passar dos séculos e no limiar do século XX, eles ainda eram vistos como um problema público.



Poraimos: O Holocausto dos Povos Ciganos



No final do século XIX foi criado na Alemanha um Serviço de Informação que tinha com o objetivo registrar todos os ciganos para ajudar a polícia a acabar com o que chamavam de “praga cigana”. Os ciganos foram obrigados, a partir de decretos e leis a se tornarem sedentários e a praticar trabalhos forçados[8]. Por volta de 1937, o psiquiatra Robert Ritter e sua enfermeira Eva Dustin estavam a cargo das pesquisas biológicas e raciais sobre os ciganos, uma vez que Ritter estava encarregado do Centro de Pesquisa para Higiene Racial e Biologia Populacional. Ritter desenvolveu uma pesquisa acerca de hereditariedade e criminalidade, no intuito de provar que os ciganos eram criminosos por serem ciganos, pois algo em sua genética determinava isto. Muitos ciganos foram esterilizados. Segundo Moonen, a partir de 1942 a esterilização e o confinamento dos ciganos foram abandonados por um método mais eficiente, o genocídio[9].



A partir do momento em que os judeus foram enclausurados nos guetos e posteriormente enviados aos campos de trabalho e de concentração, as autoridades alemãs pediam o mesmo destino para os ciganos. Segundo Dwork e Pelt:



“Com a aprovação de Himmler, 4.996 romas e sintis austríacos foram mandados para o gueto de Lodz em novembro de 1941. Foram encarcerados em algumas casas sem moveis e com poucas instalações sanitárias, separados do gueto por uma cerca de arame farpado.” (DWORK & PELT, 2004:298.)



A alimentação era escassa e vinha do conselho judeu, os ciganos eram separados dos judeus não apenas na vida no gueto, mas também após a morte, pois foram enterrados em cemitérios próprios para ciganos, nos guetos a mortalidade era alta[10].



O envio de ciganos aos campos de concentração possibilitou aos alemães a oportunidade de exterminar a “praga cigana” de vez de seu território. Como dito anteriormente estima-se que cerca de quinhentos mil ciganos foram vítimas do Holocausto, e da mesma forma que os judeus, foram humilhados, torturados, forçados a trabalhar nos campos e posteriormente foram eliminados.



Com o fim da Guerra, veio o julgamento pelos crimes cometidos durante ela, no entanto, Ritter e sua enfermeira foram absolvidos em Nuremberg. O Holocausto cigano continua pouco conhecido, embora seja verdade que os estudos acerca tenham aumentado, e diferentemente dos judeus, os ciganos não receberam nenhum tipo de indenização pós-guerra, ou seja, de uma forma ou de outra, é como se estes povos não tivessem sofrido os horrores daquele momento, não tivessem sido massacrados ou não tivessem existido.



Hoje, em sociedades que dizem acreditar no multiculturalismo, numa época que depois de muita morte e sofrimento, ainda, experimentamos preconceito e discriminação direcionados aos povos ciganos. A Europa ainda é anticigana, o mundo ainda é anticigano, e nós ainda não conseguimos admitir os ciganos como seres humanos iguais a todos nós, e principalmente, não conseguimos admitir que eles existem.



Referências Bibliográficas



ABRAHAM, Bem. Holocausto. São Paulo: WG Comunicações e Produções, 1976.



BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.



DIEHL, Astor Antônio. Cultura Historiográfica – Memória, Identidade e Representação. São Paulo: EDUSC, 2002.



DWORK, Debórah. PELT, Robert Jan van. Holocausto, uma história. Rio de Janeiro: Imago, 2004.



MOONEN, Frans. Anticiganismos: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008. Edição digital adquirida através do site www.dhnet.org.br/sos/ciganos/index.html acesso em 14/04/2010.



PEREIRA, Cristina da Costa. Os Ciganos Ainda Estão na Estrada. Rio de Janeiro: Rocco, 2009.



ROSENBAUM, Ron. Para Entender Hitler. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 2002.



VEYNE, Paul Marie. Como se Escreve a História. 4ª Ed. Brasília: Editora Universitária de Brasília, 1998.





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[1] Aluna de Graduação em Licenciatura Plena em História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), bolsista em História Contemporânea I do programa de monitoria da Pró-Reitoria de Ensino e Graduação (PREG/UFRPE), membro da equipe editorial do periódico acadêmico de História SOPHIE (DEHIST/UFRPE), membro do Grupo de Estudo em História da Arte (GEHA).



[2] DIEHL, Astor Antônio. Cultura Historiográfica – Memória, Identidade e Representação. São Paulo: EDUSC, 2002.



[3] MOONEN, Frans. Anticiganismos: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008:53.



[4] DWORK, Debórah. PELT, Robert Jan van. Holocausto, uma história. Rio de Janeiro: Imago, 2004:123.



[5] DWORK, Debórah. PELT, Robert Jan van. Holocausto, uma história. Rio de Janeiro: Imago, 2004:121.



[6] DWORK, Debórah. PELT, Robert Jan van. Holocausto, uma história. Rio de Janeiro: Imago, 2004:120-122.



[7] MOONEN, Frans. Anticiganismos: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008:19.



[8] MOONEN, Frans. Anticiganismos: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008:53.



[9] MOONEN, Frans. Anticiganismos: Os ciganos na Europa e no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008:56.



[10] DWORK, Debórah. PELT, Robert Jan van. Holocausto, uma história. Rio de Janeiro: Imago, 2004:298.

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