sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O vestuário na Literatura Romântica do Século XIX








O Vestuário na Literatura Romântica do Século XIX: Construções Imagéticas Sobre a Moda nos Romances Diva, a Moreninha e a Escrava Isaura

por Elza Guimarães Andrade


Sobre a autora[1]

Introdução

A roupa está intimamente ligada a fatores de natureza psicológica, política, econômica e sócio-cultural. Quanto aos estudos de natureza histórica, tem-se que as várias trajetórias da humanidade podem ser contadas e analisadas de várias formas e por diferentes pontos de vista, utilizando-se de variados objetos para lhe dar sentido, o fenômeno da moda é um deles.

A presente análise dos modos de vestir no século XIX, tomando por fonte primária fontes literárias da época, tende a rejeitar e considera como ultrapassadas predileções de natureza intelectual que direcionam à moda o caráter de natureza superficial, não constituindo, pois,objeto importante no entendimento das sociedades e dos tempos passados. Para fazê-lo, conta com subsídios e preceitos teóricos promovidos em larga medida pela antropologia, pela sociologia da cultura e pela história das mentalidades.

Em meio a tais inclinações, o presente artigo tende a evidenciar algumas das percepções dos gostos de vestir no Brasil do século XIX - os quais poderão demonstrar elementos sócio-culturais do período - a partir de interpretações do vestuário utilizado pelas protagonistas dos romances românticos tomados aqui como fontes primárias. Para isso, utiliza princípios atribuídos à chamada História Cultural, principalmente aqueles dimensionados por Roger Chartier e relacionados aos conceitos de representação e apropriação.

Entende-se que a moda é uma vitrine de seu tempo. Através dela é possível conceber formas de representação e comportamentos de determinada época, demonstrando e caracterizando sistemas de regulação e de pressões sociais. Admite-se que a vestimenta identifica, rotula, exclui, ou insere o indivíduo no contexto social de determinada época. Numa abordagem que admite uma história da moda menos apegada às cronologias e ligada aos aspectos sociológicos, LIPOVETSKY (1997) aponta que:

“(...) é um reflexo de sua época e no decorrer das mudanças históricas, o surgimento da temporalidade breve da moda significa a disjunção com a forma de coesão coletiva que assegura a permanência costumeira, o desdobramento de um novo elo social, paralelamente a um novo elo social legítimo”.[2]

Para entender as principais características da forma de vestir das protagonistas dos romances românticos produzidos no Brasil do Século XIX, destacam-se como fontes primárias os romances “Diva” (1864), do escritor José de Alencar; “A Moreninha” (1844), livro escrito por Joaquim Manoel de Macedo; e “A Escrava Isaura” (1875), lançado por Bernardo Guimarães, todos escritores do Romantismo Brasileiro. Quanto aos mecanismos concernentes à moda em si, as principais elucidações dar-se-ão por meio do diálogo com autores que discorreram sobre o tema do Vestuário na Europa do século XIX – influência principal da moda brasileira, como James Laver (1989), Carl Kohler (2009) e Gilles Lipovetsky (1997).

Por tratar-se de uma abordagem que vai buscar na literatura romântica brasileira do século XIX suas fontes primárias, os primeiros esforços consistem em evidenciar o Romantismo enquanto padrão estético surgido na Europa entre o fim do século XVIII e início do século XIX, suas principais características e suas relações e influências na literatura. Em seguida, é analisado o surgimento da escola romântica no Brasil. Tais considerações são feitas visando verificar o universo artístico vivenciado pelos autores das obras aqui analisadas, o qual teria sido interpretado nas mesmas.

Em seguida é feita uma breve elucidação sobre a moda européia, principalmente na Inglaterra e na França, países que foram as principais influências do Brasil no período. Tudo para chegar à análise do que é proposto no presente estudo: identificar as características e os significados sócio-culturais do vestuário utilizado pelas protagonistas dos romances românticos aqui utilizados como fontes primárias.

O Romantismo Enquanto Estilo Artístico

Tendo surgido inicialmente na Grã-Bretanha e na Alemanha, entre o término do século XVIII e início do XIX, tal como evidencia Nejar (2007, p. 22), o Romantismo foi um movimento artístico, político e filosófico marcado por uma posição contrária ao racionalismo, advindo do movimento iluminista. Logo tornou-se uma visão de mundo centrada no indivíduo, tendo ajudado na consolidação dos estados nacionais europeus, através da propagação de um nacionalismo exacerbado. Os ideais românticos espalham-se pela Europa e, posteriormente, pela América.

No entanto, os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade não foram empregados tal como era aspirado pelos revolucionários, e a sensação de frustração tomou conta de toda uma geração, marcando-a profundamente, o que teria transformado o romantismo em algo maior do que uma visão de mundo, em um movimento artístico, político e filosófico.

Assim, o Romantismo surge entre dois sentimentos contrários, o de afirmação e negação, onde se desencadeiam conflitos entre o eu e o mundo, o indivíduo e o Estado, gerando como consequência, o que vem a ser uma das principais características do movimento: uma visão de mundo individualista. Sobre isso, HAUSER (1982), destaca que:

“A inovação sociológica do romantismo consiste na politização da arte e não apenas no sentido de que artistas e escritores aderem a partidos políticos, mas também no de levarem a efeito políticas partidárias dentro da propria vida artistica. (...) o público defronta-se com um movimento amplo e compacto, que parece abranger a totalidade da vida intelectual do país e assegurar e estar assegurando a vitória completa e total do romantismo”. [3]

A extrema emotividade e o desejo de evasão iriam revelar-se como alternativa para o romântico. Ficaria nítida toda a sua perplexidade diante de um momento cujos valores se tornaram inaceitáveis. Assim, o espírito romântico passa a caracterizar uma ótica centrada no indivíduo e os autores românticos passarão a discorrer sobre os dramas humanos, os amores trágicos, ideais utópicos e desejos de escapismo.

O anseio de liberdade relaciona-se às teorias de liberdade econômica, visto que as realizações e empreendimentos da burguesia ascendente encontravam apoio no liberalismo. Assim, a arte literária, reflexo de sua época, procura também se engajar em busca da liberdade criadora.

No Brasil o surgimento do Romantismo foi influenciado por acontecimentos assistidos pela Europa Ocidental durante o final do século XVIII e início do século XIX, tais como a Revolução Francesa e a queda do governo absolutista, e a Revolução Industrial. Das mudanças ocorridas no Brasil, há que se destacar as influências advindas da chegada da côrte no Rio de Janeiro, em 1808, e a própria Independência. Fatores estes que repercutiram de forma decisiva na vida o país.

Mas será a partir de meados e mesmo fim do século XIX que nossos escritores serão tomados pelos princípios do espírito romântico europeu. Tal como dimensiona BOSI (2006), “os anos de 60 tinham sido fecundos como preparação de uma ruptura mental com o regime escravocrata e as instituições políticas que o sustentavam. E o sumo dessas críticas já se encontra nas páginas de um espírito realista e democrático.”[4]

Nesse período, a estrutura sócio-econômica brasileira torna-se complexa, “o deslocar-se do eixo de prestígio para o Sul e os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo para a nação, propício ao fermento de idéias liberais, abolicionistas e republicanas”.[5] Assim, o desenrolar das origens do Romantismo no Brasil se dá sob condições particulares, sendo que os autores e suas obras tiveram íntimas relações com seu tempo e estiveram a serviço de uma consciência nacional, ainda em formação.

Tal como salienta RONCARI (2002):

“Na verdade, o Romantismo teve aqui uma significação bastante diversa da que teve na Europa. Enquanto visão de mundo. Ele viverá um processo de ajuste e adaptação. Os nossos autores, os melhores, souberam se aproveitar dele e incorporaram os elementos que serviam mais aos seus propósitos. (...) essa era a primeira tarefa dos nossos estudantes que iam formar-se na Europa”.[6]

A Europa e os Anos Oitocentos: a performance do belo

A França e a Inglaterra foram ícones da moda no século XIX, devido às suas conquistas e ao poder que exercia em muitas das nações do mundo. No caso do Estado brasileiro, e da própria nação, sabe-se que, historicamente, e como forma de articulação com o mundo desenvolvido, implantou modelos estrangeiros sem muita preocupação em adaptá-los às particularidades locais.

No caso da moda, o Brasil do século XIX, impulsionado pelos detentores do poder na sociedade local, sempre valorizaram os modos de vida dos países tidos como referência no período, como a Grã-Bretanha e a França. Daí, para entender os principais traços característicos do vestuário oitocentista do país, faz-se necessário verificar algumas das transformações vivenciadas pela moda européia feminina desse período.

Segundo LAVER (1989), na Europa, os ímpetos de renovação advindos do fenômeno aqui entendido por moda no século XIX, podem ser divididos em quatro grandes momentos: “Império”, “Romantismo”, “Era Vitoriana” e “Belle Époque”. No entanto, há que se conceber que tais mudanças e tendências não foram regra em todos os países da Europa, elas explicitam o que ocorreu nos dois países que mais influenciaram o vestuário no período.

O estilo “Império” compreende a fase Napoleônica, com duração entre 1804 e 1815. KOHLER (2009), afirma que nele “buscou-se assimilar algumas referências da indumentária da antiguidade clássica, a moda logo instituiu um vestido sem pregas, e por volta de 1807 os vestidos eram tão justos que mal se conseguia andar com eles” [7]. Durante a década de 10, as mulheres usavam vestidos que pareciam camisolas, com um belo decote e com um comprimento que ia até o tornozelo, acompanhados de xales.

O movimento romântico e sua ideologia, por pregar resgates das emoções humanas e o consequente distanciamento de um racionalismo estabelecido e vivenciado pelo movimento iluminista e pela Revolução Industrial, trará grandes inovações em várias áreas, como na música, na literatura, nas artes e na moda. É perceptível a preocupação com a vestimenta feminina, numa sociedade de moral extremamente burguesa. Enquanto os homens trabalhavam e faziam fortuna, as mulheres ficavam responsáveis por ostentar os poderes materiais de sua classe.

Num estudo acerca dos trajes e materiais utilizados na evolução das roupas e do mundo ocidental, LAVER (1989) em relação às cores utilizadas, afirma: “[...] o uso de tecidos estampados se deu tão regularmente quanto à preferência pela cor preta.” [8] Por volta de 1820, os vestidos femininos tiveram sua cintura marcada pelo uso do corpete. As saias dos vestidos começaram a ganhar um volume cônico, obtido pelo uso cada vez maior de anáguas. As mulheres incorporam, novamente, o espartilho ao seu vestuário, o uso era constante, mesmo para as meninas.

A prosperidade crescente significava maior elaboração nas roupas, e as saias foram ficando cada vez mais rodadas. Estas causavam enorme apelo erótico, que se manifestava no momento em que a mulher precisava levantar a cauda do vestido. Seu peso acabou tornando-se intolerável e a crinolina, um tecido feito de crina de cavalo, passou a ser utilizado na sua confecção, ele podia estar misturado ao algodão ou ao linho, que eram capazes de estabelecer flexibilidade.[9]

Sobre isso, LAVER (1989), retoma:

“A crinolina, com toda certeza, não era um traje virtuoso, e a época em que atingiu seu maior desenvolvimento, O Segundo Império francês, não foi uma época de muita moralidade. (...) Parece ter havido, certamente, uma relação simbólica entre a crinolina e o Segundo Império, com sua prosperidade material, sua extravagância, suas tendências expansionistas... e sua hipocrisia”. [10]

Entre as décadas de 1870 e 1890, tem-se a chamada “Era Vitoriana” da moda européia, a qual passou por grandes misturas. Por ter vislumbrado diferentes tendências, pode-se afirmar que não tenha alcançado uma identidade, assemelhando-se grandemente ao romantismo que lhe é predecessor. A novidade estará nos tecidos, que serão os mesmos usados em cortinas e estofados. Permanece o uso contínuo do espartilho. A crinolina desloca-se para trás. Tendência que anuncia as predisposições do “Estilo Belle Époque” que estaria por vir. [11]

O que prevalece na moda desse período e que se estende até os primeiros anos do século seguinte, tal como nas artes do período, é o gosto pelas curvas, percebidas no entorno da cintura, que deveria estar mais fina do que nunca, pois a “[...] velha e rígida estrutura social estava se desfazendo visivelmente. Havia uma brisa de liberdade, simbolizada pela extravagância de suas roupas cotidianas. Estava bem claro de que a era vitoriana estava chegando ao fim”. [12]

O Vestuário e a Moda das Heroínas Românticas em José de Alencar, Bernardo Guimarães e Joaquim Manoel de Macedo

A grande maioria dos autores que tratam do tema do vestuário do Século XIX admite aquele ter sido um momento influenciado grandemente pelas mudanças econômicas e políticas vivenciadas pelo mundo ocidental e sentidas a partir das Revoluções Industrial e Francesa. Enquanto aos homens cabia a sobriedade da indumentária, à mulher era conferida riqueza de detalhes e suntuosidade em sua vestimenta.[13]

As roupas das mocinhas mais abastadas do Brasil daquele período traziam consigo algo de simbólico, advindo das principais transformações do universo social do qual faziam parte. Nossos autores românticos, também atores sociais, ajudaram a dimensionar e até mesmo influenciar suas leitoras, através de suas descrições minuciosas, muito do vestuário do período. Sobre José de Alencar, um de nossos principais escritores românticos, NEJAR (2011), afirma que:

“Criou Alencar os mais variados tipos no painel de personagem. (...) Vigendo, ali, duas leis: a dos acontecimentos, com o passado influindo no presente dos protagonistas e a dos desequilíbrios sociais, modificando os destinos. Sem esquecer – o que não é lei, é argúcia do que escreve: a força das minúcias dos objetos, gestos, atos, caracterizando hábitos, vestimentas, que integram seu romance, prendendo o leitor”. [14]

Emília

Em Diva, a personagem Emília é uma moça recatada e austera ao mesmo tempo. Como a maioria das protagonistas dos romances românticos do período, possuía garra e atitude, desde que fosse para amar e lutar pelo que desejava. Descrita por Alencar como uma mulher extremamente bela e adorada pelos homens, aos quais ela fazia questão de impor distância.

As roupas usadas por Emília demonstram sua força, pureza, e recatamento perante os homens que se aproximavam. Era praticamente um ser intocável, tal como descreve seu criador:

“(...) Na contradança as pontas de seus dedos afilados, sempre calçados nas luvas, apenas roçavam a palma do cavalheiro: o mesmo era quando aceitava o braço de alguém. Bem diferente nisso de certas moças que passeavam nas salas reclinadas ao peito de seus pares, Emília não consentia que a manga de uma casaca roçasse nem de leve as rendas de seu decote”.[15]

A personagem de José de Alencar encantava também fora da ficção, já que era educada e moldada nos melhores padrões da sociedade fluminense. Padrões estes que tinham por objetivo firmar seu poderio no país recém independente de Portugal, o que era feito através de influências européias nos modos de pensar e agir, que repercutiam, também, na moda.

Bem ao estilo romântico europeu, carregado de luxo e suntuosidade, vestia-se a deusa do romance de Alencar, “[...] Seu passo tinha o sereno deslize, que foi o atributo da divindade; ela movia-se como os cisnes sobre as águas, por uma ondulação das formas. A multidão afastava-se para deixá-la passar sem eclipse, na plenitude de sua beleza. Assim, por entre o esplêndido turbilhão, ela assomava como um sorriso; e era realmente um sorriso mimoso daquela noite esplendida.” [16]

Observando a descrição acima e sua alusão a chamada “ondulação nas formas”, tem-se a nítida compreensão de que havia uma paixão pelas saias de largura avantajada, as quais identificadas em todas as protagonistas dos romances aqui analisados, eram um símbolo da fertilidade feminina e de sua vocação para o casamento, bem como acresciam à mulher o papel de ornamento do homem bem sucedido nos negócios e na família.

A “Diva” caprichava no uso de luvas, o que garantia o impedimento de qualquer contato com um homem, e não usava muitos ornamentos nos cabelos. Durante o dia costumava usar capa de caxemira escura, que lhe cobria quase todo o rosto, a fim de proteger-se do sol.

É inegável a influência da moda européia na indumentária de Dona Emília. Alencar, sobre isso, descreve que “Encomendava ela à sua modista algum elegante vestido, ou comparava qualquer novidade parisiense recentemente chegada.” [17] O estilo “Romântico” e “Vitoriano” são predominantes e notados, principalmente, no que se refere às grandes ondulações das saias: “[...] e tão suaves eram as flexões desse talhe que, apesar de largas roupagens percebia-se a doce vibração do movimento revelado exteriormente no harmonioso ondulado.” [18]

O volume e armação na vestimenta de Emília parecia contar com a presença da já utilizada armação de arcos - crinolina - que possibilitava, além de grande enchimento na parte inferior da roupa, liberdade de movimentos para as mulheres, bem ao estilo vitoriano europeu daquele mesmo século. [19]

Além da saia extremamente rodada, têm-se a delicadeza dos babados e laços, característicos do movimento romântico e que faziam a mulher parecer ainda mais doce, pura, casta e pronta para o amor. Sobre o comprimento, é possível identificar a grande preocupação em deixá-lo maior e capaz de impedir a visão dos pés e tornozelos, o que gerava enorme apelo erótico para a época.

Os ombros desnudos, em algumas ocasiões, ajudavam na construção de uma imagem feminina frágil e delicada, tal como deveria ser a mulher do século XIX e representada, nesse caso, por Emília. Todas deveriam ser boas mães e esposas dedicadas e a roupa ajudaria a enfeitá-las, auxiliando na obtenção do futuro marido. Sobre o decote, é leve, mas está presente e, por vezes, vem acompanhado de rendas, ostentando o charme e o mimo da deusa de Alencar. As cores claras eram as suas preferidas, numa alusão à sua pureza e castidade.

Dona Carolina

Em “A Moreninha” (1844), Joaquim Manoel de Macedo trás os costumes e gostos da sociedade carioca de meados do Século XIX, através do romance entre um estudante de Medicina e uma jovem de 15 anos. Dona Carolina, a moreninha, por sua beleza ser mais ligada às características tropicais de nosso país – cabelos escuros e pele levemente morena - foi capaz de modificar o ideal de beleza admirado no Brasil do período, de moça loira e pálida.[20]

O amor impossível e a mulher idealizada são temas frequentes na prosa romântica. O final do romance é considerado perfeitamente de acordo com o ideal amoroso romântico e as normas sociais, em virtude de não ter havido adultério ou traição. Tal como as personagens de José de Alencar e de Bernardo Guimarães, a protagonista dessa prosa é tida como um referencial das mocinhas de seu tempo, capaz de despertar admiração nas moças do Brasil do período.

Assim, a heroína romântica de Joaquim Manoel de Macedo tem como principais características a inocência, a pureza, a curiosidade, a espontaneidade, o modo travesso de ser. Além disso, ao contrário da maioria das moças de seu tempo, dispensa futilidades, demonstrando liberdade diante de suas emoções, tornando-se encantadora.

Bastante segura de si, sua vestimenta ajuda a exprimir tal personalidade. Não se preocupava excessivamente com as principais tendências da moda do período, “[...] enquanto as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade dos modistas das ruas do Ouvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jóias, D. Carolina vestiu um finíssimo, mas fino vestido de garça, que até peava contra a moda reinante, por não ser sobejamente comprido. E vindo assim a aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenções.”[21]

Há um toque de simplicidade na vestimenta da personagem, e seu desprendimento ao vestir-se, se comparado às outras moças, acabava por lhe colocar à margem do que era usado no período “[...] seu pecado quanto à moda reinante não era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem-feito e mais pequeno que se pode imaginar.”[22]

No entanto, beleza e elegância não eram dispensadas. Havia uma harmoniosa combinação na simplicidade das escolhas do vestuário e dos gestos e modos de D. Carolina. Sobre o estilo, pode-se dizer que o curto comprimento denuncia o período de transição do Estilo Império para o Estilo Romântico da moda européia. É justamente aí que se pode fazer uma das principais avaliações da moda no Brasil oitocentista: havia uma grande mistura aqui no modo de vestir-se, mistura das principais tendências vistas na Europa daquele século.

Porém, as ondulações nas saias já apontam para um traje muito mais ao estilo romântico, os que se evidencia através dessas ondulações e da cintura fina, acompanhada pelo uso do espartilho. No entanto, o autor não faz alusão ao uso da crinolina ou anquinha sob as saias. As cores claras, típicas do período romântico, e o próprio tecido utilizado, a garça, caracterizavam o jeito doce de vestir do movimento romântico.

Isaura

O Livro de Bernardo Guimarães, publicado em 1875, foi um marco na literatura brasileira por trazer a temática da abolição de um jeito “ameno” para a sociedade cons0ervadora de então, que já presenciava os clamores de liberdade advindos da senzala, mas que tremia com a possibilidade de libertação, por subsistir num país ainda tipicamente rural.[23]

O romance apresenta Isaura, uma escrava de pele branca, educada nos padrões burgueses de seu tempo e que talvez por isso tenha sido tão admirada e amada por seus leitores mais fervorosos. Era uma mulher carregada de extrema beleza, que vivia numa fazenda em Campos dos Goitacazes, no Rio de Janeiro, em meados do século XIX.

A obra, além de exaltar o amor romântico exacerbado, gira em torno da busca pela liberdade da escrava, que tentava se desvencilhar dos desmandos de seu senhor, sedento pelo prazer sexual que aspirava ter com ela. Sua personalidade é típica dos romances românticos, carregada de bondade, pureza e humildade diante dos outros, mas, também, da capacidade de demonstrar atitude e força sempre que tentassem ferir sua castidade. Sua vestimenta era caracterizada pelo uso de tecidos simples, mas que nem por isso lhe tiravam a elegância e a beleza:

“(...) Um vestido de chita ordinária azul-clara desenhava-lhe perfeitamente com encantadora simplicidade em amplas ondulações, parecia uma nuvem, do seio da qual se erguia a cantora como Vênus nascendo da espuma do mar, ou como um anjo surgindo dentre brumas vaporosas. Uma pequena cruz de azeviche presa ao pescoço por uma fita preta constituía o seu único ornamento” [24].

Tal descrição aponta para um traje ao estilo simples, porém carregado de características do estilo “Romântico”. Bernardo Guimarães é enfático ao destacar a presença de ondulações nas saias capazes de “assemelhar-se a uma nuvem” [25], dando-lhes um tom majestoso, ainda que livre de tecidos luxuosos e ricos enfeites, geralmente utilizados pelas mocinhas de famílias abastadas da época.

Sobre o uso de decote, o autor segue: “[...] o colo donoso e do mais puro lavor, sustenta com traça inefável o busto maravilhoso. Os cabelos soltos e fortemente ondulados se desempenham caracolando pelos ombros em espessos e luzidios rolos” [26] Tal descrição confirma a presença do decote, bem como do ombro desnudo, utilizado pelas moças abastadas da época e que fazia referência ao Estilo Vitoriano da moda européia.

Em relação ao comprimento do traje, não são especificados tamanhos, mas ao que parece, o “Estilo Vitoriano” – tamanhos tão grandes que cobriam os tornozelos – está presente também como característica marcante, haja vista que o autor não destaca o aparecimento dos tornozelos da moça, o que poderia vir a causar intenso apelo erótico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dos perfis das heroínas dos romances “Diva” (1864), “A Moreninha” (1844) e “A Escrava Isaura” (1875), foi possível chegar a elucidações sobre os modos de vestir da mulher no Brasil do século XIX, educada nos moldes das classes mais abastadas da sociedade da época. Em tal pesquisa foi dada a devida importância e atenção à busca das influências da moda européia, essencialmente Inglaterra e França, países que influenciavam também no comportamento das mocinhas do período.

No entanto, determinadas observações acerca da moda oitocentista brasileira não teriam sido possíveis sem a análise do Romantismo enquanto movimento artístico, político e filosófico, bem como da sua manifestação no Brasil recém independente politicamente. Tal estudo proporcionou uma maior compreensão do contexto histórico e artístico inserido na elaboração das fontes primárias aqui utilizadas.

Nossas roupas eram uma espécie de mistura dos estilos europeus vivenciados pela moda no século em questão, os quais teriam possibilitado à vestimenta feminina cada vez maior capacidade de elaboração. A riqueza favorecia à nova classe burguesa, dava-lhe condições de luxo e suntuosidade, isso era expresso em sua forma de vestir, principalmente no universo feminino, no qual a mulher era uma espécie de ornamento do homem burguês, e devia ser educada para o casamento e cuidado com os filhos, tal condição feminina poderia ser vista através dos vestidos usados.

A moda das heroínas românticas possuía ligações profundas com o estilo europeu, só que não teria sido contemporânea das mudanças implementadas na França e Inglaterra, suas principais referências. Em meio aos jogos de imitação e criação, aqui teria ocorrido uma grande mistura de estilos, tendo as brasileiras sido consideradas “cafonas”, em certo momento, pelas européias. Porém, isso não impediu a beleza e suntuosidade dos trajes de nossas mocinhas.

A paixão pela novidade, alinhada à sedução do que a sociedade da época apreendeu enquanto belo e elegante tem a ver com os fluxos e refluxos sócio-culturais previstos num país que almejava firmar-se enquanto nação independente de Portugal. A moda foi mais um desses instrumentos de regulação social. As anáguas ou arcos de crinolina sob as saias, os babados, rendas e decotes presentes nas vestimentas de Emília, Isaura e Dona Carolina ajudaram a compor os rótulos e funções que cabiam à mulher de “boa família” do período: esposa e mãe.

Fontes Primárias

ALENCAR, José Martiniano de. Diva. 5. ed. São Paulo: Ática, 1993.

GUIMARAES, Bernardo Joaquim da Silva. A escrava Isaura. 18. ed. São Paulo: Ática, 1992.

MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. 30. ed. São Paulo: Ática, 1991.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Ed. Cultrix. São Paulo, 2006.

HAUSER, Arnold. Historia social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 285p.

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 294p.

MAUAD, Ana Maria. Imagem e Auto –Imagem do Segundo Reinado. In:ALENCASTRO, Luiz Felipe de, e NOVAIS, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil. v. 2 São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.181-231

RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: Dos primeiros Cronistas aos últimos românticos. 2 ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 299

SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das roupas: a moda do século dezenove. São Paulo: companhia das letras, 1987.

NERY, Marie Louise. A evolução da indumentária: subsídios para a criação de figurino. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2003.


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[1] Mestranda em Antropologia Social pela Universidade Federal de Sergipe, sob orientação do Prof. Dr. Gilson Rambelli. Graduada em História pela Universidade Federal de Sergipe. elza.gandrade@gmail.com

[2] LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.54

[3] HAUSER, Arnold. Historia social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982. p. 644.

[4] BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Ed. Cultrix. São Paulo, 2006. p. 163

[5] Idem.

[6] RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: Dos primeiros Cronistas aos últimos Românticos. 2 ed. – São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 299

[7] KÖLER, Carl. História do Vestuário. Editado e atualizado por Emma Von Sichart; tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 486

[8] LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 285p.

[9] SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das roupas: a moda do século dezenove. São Paulo: companhia das letras, 1987.

[10] LAVER, James, op. cit., p. 185.

[11] NERY, Marie Louise. A evolução da indumentária: subsídios para a criação de figurino. Rio de Janeiro: Ed. Senac Nacional, 2003.

[12]LAVER, James, op. cit., p. 211.

[13] SOUZA, Gilda de Mello, op. cit., p. 45

[14] NEJAR, Carlos. História da Literatura Brasileira: da Carta de Caminha aos Contemporâneos. São Paulo: Leya, 2011, 2ª Edição. p. 107

[15] ALENCAR, José Martiniano de. Diva. 5. ed. São Paulo: Ática, 1993. p. 47

[16] Ibidem.

[17] Ibidem, p. 74

[18] MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. 30. ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 58

[19] O movimento tido como “Romântico” ou “Vitoriano” aqui mencionado não obedece à cronologia da moda européia, já que, muito do que ainda era considerado como novidade aqui, já havia sido superado nos “maisons” da Europa.

[20] NEJAR, Carlos, op. cit., p. 94

[21] MACEDO, Joaquim Manuel de, op. cit., p. 115

[22] GUIMARAES, Bernardo Joaquim da Silva. A escrava Isaura. 18. ed. São Paulo: Ática, 1992. p. 115

[23] RONCARI, Luiz, op. cit., p. 304

[24] MACEDO, Joaquim Manuel de. A Moreninha. 30. ed. São Paulo: Ática, 199. p. 116

[25] GUIMARAES, Bernardo Joaquim da Silva, op. cit., p. 112

[26] MACEDO, Joaquim Manuel de, op. cit., p. 14

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