quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A Migração européia e a marginalização socio-cultural da população nacional







São Paulo - uma cidade no processo de segregação sócio-cultural e urbanístico no inicio do século XX

por Robson Roberto da Silva


Sobre o artigo[1]

Sobre o autor*

1 –A imigração européia e a marginalização sociocultural da população nacional

A cidade de São Paulo nos anos finais dos oitocentos experimentou um crescimento populacional sem precedentes em sua História, em pouquíssimas décadas, o número de habitantes multiplicou-se em 20 vezes, tendo seu apogeu entre 1890 - 1900 (Ver Tabela:1)

Tabela – 1 Evolução Percentual da População – São Paulo (1872 – 1920)[2]

Ano
População
Periodo
Percentual

1872
26.020
1872-1890
124,78%

1890
64.934
1890-1900
200,20%

1900
260.000
1900-1910
60,38%

1910
314.000
1910-1920
92,58%

1920
581.435
——————
—————-



Esse fenômeno social e demográfico se explica pelas intensas transformações que o Brasil vivenciava desde a segunda metade do século XIX. A época da derrocada do sistema escravista coincidiu com o aumento da inserção do industrialismo nas cidades brasileiras e a ascensão do mercado de trabalho livre. Diante de tal configuração socioeconômica, não havia mais espaço na nova sociedade industrial e burguesa para instituições arcaicas como a escravidão. Contudo, o processo de libertação da população negra e mestiça em 1888 não veio acompanhado de plena cidadania, essa população será apartada dos processos produtivos, sociais e políticos, sendo relegados a uma situação de marginalização socioeconômica e urbana. “Nessa época em que a “ciência” passa a ocupar o trono do saber, comanda também mais de perto uma série de submissões: a do negro escravo ou recém-liberto, (...).”[3] O crescimento industrial impulsionou a expansão urbana da cidade, antes a participação das indústrias na economia brasileira era incipiente, porém o aumento na virada do século foi significativo

O desenvolvimento industrial trouxe de reboque a modernização da cidade de São Paulo, um sentimento de reformismo urbano e cultural dominou toda a sociedade, novidades tecnológicas da época não paravam de chegar, como a iluminação elétrica, o rádio, o bonde elétrico, telégrafo, automóveis, linhas telefônicas, novos edifícios e lojas sendo construídos, etc. São Paulo respirava modernidade e progresso (Imagem: 2).




Imagem 2 – Aurélio Becherini: Viaduto Santa Ifigênia, São Paulo, 1925. Fonte: Livro: Aurélio Becherini, São Paulo: Editora Cosac Nayfy, 2009, p.42 Acervo: Biblioteca Setorial de Ciências Humanas (BSCH) Universidade Estadual de Londrina – PR

Com o advento da industrialização paulista, houve a necessidade de uma grande quantidade de mão-de-obra operária nas indústrias, assim como para o trabalho nas lavouras cafeeiras no interior do Estado em substituição dos escravos recém-libertados, a solução encontrada foi à imigração européia, principalmente italiana, para São Paulo. Essa preferência pelos europeus para serem os trabalhadores das fábricas agradavam a sociedade paulista não apenas por motivos econômicos, havia também uma intensa campanha pela introdução do elemento branco na matriz étnica da população, em detrimento dos negros e mestiços. “A substituição do escravo negro pelo imigrante livre foi acompanhada por um discurso que difundia a solução como alternativa progressista, (...) “civilizados e laboriosos” trariam sua cultura para desenvolver a nação.”[4] Esse discurso enfatizava a purificação racial e cultural da sociedade, onde negros e mestiços eram visto como obstáculo há ser superado. Sendo assim, tanto governo quanto a sociedade não mediram esforços financeiros e estruturais para trazerem a maior quantidade possível de imigrantes europeus para o Estado. (Imagem: 3).




Imagem 3 – Guilherme Gaensly: Imigrantes no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo 1890. Acervo: Fundação do Patrimônio da Energia de São Paulo - Memorial do Imigrante.

Fonte: Wikipédia. http//upload.wikimedia.orgwikipedia
commonsffcItalians_Sao_Paulo.jpg

A mentalidade da superioridade da raça branca em contraste com a inferioridade da raça negra e mestiça será a pedra angular das políticas públicas e sociais dos governos da Primeira República, onde os ex-escravos e libertos terão que carregar o estigma da escravidão, demonstrando que ser liberto não significava necessariamente ser cidadão. “Indolência, nomadismo, desperdício, (...), larga margem de ócio, falta de disciplina, muita dança, fumo, bebida: (...) A figura do ex-escravo fica assim associada ao malandro/vadio/maloqueiro, figura que povoa até hoje nossa mitologia política.”[5] Diante de tal difamação, a população negra e mestiça ficou apartada das melhorias urbanísticas, sociais e culturais da modernização da cidade de São Paulo, sendo relegados a viverem distante dos melhores bairros, empurrados para as periferias. “As oportunidades para os negros em São Paulo eram limitadas. O impacto da imigração no lugar dos negros no mercado de trabalho foi devastador, tanto ideológica quanto quantitativamente.”[6] Restavam para eles os piores trabalhos, os serviços mais pesados: carroceiros, limpeza de bueros e coleta de lixo, além de atividades informais, como vendedores ambulantes. (Imagem: 4).




Imagem 4 – Vincenzo Pastore: Vendedor de vassouras em rua do centro da cidade, provavelmente na Rua Direita, entre as ruas São Bento e Quintino Bocaiúva, 1910 Acervo: Instituto Moreira Salles. São Paulo - SP http://homolog.ims.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/

Mas, não eram apenas sobre os negros, pardos e mulatos que as autoridades políticas e a intelectualidade paulista desferiram seus ataques cientificistas, todo e qualquer tipo racial legitimamente nacional entrava na categoria da inferioridade: o caboclo e o caipira (individuo típico do interior do Estado) eram taxados como preguiçosos e indolentes. “(...) os nacionais sempre foram encarados como vadios, inaptos para o trabalho (...). Dai a vida errante, utilizando-se dos recursos naturais da terra, (...) Dai a medicancia e indigencia de um povo (...) ferrado pela desclassificação social (...).”[7] Essas políticas sociais e idéias científicas sobre inferioridade racial colocaram os nacionais numa péssima posição na sociedade. “Considerar vagabundos os que não estivessem assalariados, ouagregados a alguma pessoa ou família era também uma maneira de (...) marginalizar a experiência social e cultural dessa parcela despossuída da população.”[8] Emtodo o percurso da modernização de são Paulo, os negros e mestiços vão ser considerados cidadãos de segunda classe.

2 –A modernização urbanística e a segregação sócio-espacial da população nacional na cidade de são Paulo

Foi visto pelos exemplos e dados estatísticos apresentados que houve uma intensa política de distinção social na cidade de São Paulo do início do século XX com relação à população imigrante e nativa incentivada pela sociedade. Todavia, essa diferenciação não ficava limitada as ocupações profissionais, mas também através de uma nítida delimitação geográfica dos bairros e espaços públicos. “Este movimento é fruto de uma das faces dos conflitos urbanos gerados na cidade capitalista: a segregação sócio-territorial.”[9] Na medida em que a cidade de São Paulo desenvolvia-se urbanisticamente foi incorporando as tendências e aspirações reformistas dos grandes centros europeus, principalmente Paris, onde a sua influência arquitetônica era evidente, especialmente pela “haussmannização”[10] dos espaços urbanos. “(...) se costuma chamar de haussmannização, essa operação conjunta de política e higiene que consiste em desafogar o centro da capital (...) pelo duplo movimento das aberturas de vias de circulação e alta dos aluguéis, gerado pelas demolições.”[11] A modernização de São Paulo solapava os antigos vestígios da antiga vila provinciana do início do século XIX, destruindo antigas casas e casarões, demolindo bairros inteiros, ampliando ruas e avenidas, reformulando o desenho urbanístico e expulsando seus moradores para as periferias. “São Paulo possuía a feição de uma cidade em obras, passando por constantes remodelações, (...) continuo clima de alterações que contribuiu para a criação de imagens como a cidade que mais cresce no mundo e São Paulo não pode parar.”[12] A política de separação das áreas da cidade em espaços bem estruturados para a elite enriquecida pela cafeicultura (Imagem 6), os bairros operários ou os cortiços para os trabalhadores imigrantes e as áreas degradadas habitadas pelos nacionais sub-empregados formaram a tônica desse período. Segundo Santos:

Ruas, praças, becos, igrejas desapareciam e/ou eram remodelados. Costumes e pessoas eram prescritas, presas e/ou excluídas. Aparentemente, ao findar do século passado e início deste, quase todos os espaços urbanos paulistanos mais centrais vivenciavam essa espécie de “cruzada” em nome de uma eventual civilização, seguin­do os modelos europeus contra uma suposta “barbárie” dos não eu­ropeus e dos quase não europeus. [13]

A essência dessa política de segregação sócio-espacial era redefinir as regiões onde habitariam as classes elitizadas, as classes trabalhadoras e os marginalizados. (Imagem: 5) Essa política de segregação urbanística e social pode ser definida por Raquel Rolnik:

A lei organiza, classifica e coleciona os territórios urbanos, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania diretamente correspondentes ao modo de vida e à micropolítica familiar dos grupos que estiveram mais envolvidos em sua formulação. Funciona portanto, como referente cultural fortíssimo na cidade, (...) ao esta­belecer formas permitidas e proibidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limi­tada.[14]




Imagem 5 – Guilherme Gaensly: Detalhe do cartão postal da Avenida Paulista vista da residência de Adam Von Bülow, 1902. São Paulo. Fonte: Wikipédia http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Avenida_
Paulista_1902.jpg?uselang=pt

O reformismo urbanístico do início do século XX, especialmente na gestão do prefeito Antonio da Silva Prado[15] (1899 -1911) não visavam apenas o embelezamento arquitetônico da cidade, mas também a sua higienização. “A eugenia era idéia corrente entre teóricos e autoridades e a profilaxia social era praticada cotidianamente.”[16] Além do discurso hegemônico do cientificismo antropológico e sociológico, que relegava o estigma da inferioridade social e racial as populações negras e mestiças, ainda classificavam-nas como infecciosas ou contagiosas, havendo a necessidade de diagnosticá-los, enquadrá-los e vigiá-los. Nesse período ganha força nas políticas publicas o termo salubridade do ambiente urbano. Michel Foucault define:

Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do meio e seus elementos constitutivos, que permitem a me­lhor saúde possível. Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde possível dos indivíduos. E é correlativa­mente a ela que aparece a noção de higiene pública, técnica de con­trole e de modificação dos elementos materiais do meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde. Salubrida­de e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afetam a saúde; a higiene pública (...) é o controle político-científico deste meio.[17]

Nas primeiras décadas do século XX a cidade São Paulo se transformou numa verdadeira arena de disputas e conflitos por espaços e territórios entre as classes sociais, onde prevaleceram aqueles privilegiados que tinham maior poder político e econômico. “O poder político da medicina consiste em distribuir os in­divíduos (...), isolá-los, individualizá-los, vigiá-los (...) fixar, assim, a sociedade em um espaço esquadrinhado, divi­dido, inspecionado, percorrido por um olhar permanente (...) de todos os fe­nómenos.” [18] Essa divisão socio-espacial pode ser esclarecida pela descrição de Raquel Rolnik:

Os espaços da cidade são política e socialmente diferenciados de acordo com os grupos sociais que nela ha­bitam, de tal modo a definir "territórios" distintos. A grosso modo os pobres amontoam-se em bairros precários e os ricos espalham-se em espaços monumentais. Ao mesmo tempo que há separação e recorte, ocorre um processo de identifi­cação e reconhecimento internamente a cada região. Confi­nados em determinadas zonas da cidade, os grupos sociais acabam de certo modo controlando seus respectivos territórios e sobretudo identificando-se com eles. Assim o bairro segregado não é apenas um lugar no espaço da cidade, mas é o próprio grupo social que o ocupa e com ele se identifica.[19]

Os desajustados do processo civilizador eram condenados há habitarem em áreas afastadas do centro. “Na sociedade industrial conquistadora, não há lugar para os marginais.” [20] Pois a presença dessas populações degeneradas poderia ocasionar epidemias ou o desvirtuamento da moralidade, da ordem publica e dos bons costumes da sociedade. “Doença, imoralidade e pobreza se enredaram numa trama maldita de tal modo que as condições de moradia precárias eram imediatamente associadas à imoralidade e a doenças, demarcando um território rejeitado na cultura urba­nística da cidade.”[21] A associação entre pobreza, imoralidade e doença era o senso comum das autoridades e condicionaram as políticas públicas e sanitaristas desse período.

O reformismo e a modernização urbanística de São Paulo atuavam principalmente nas áreas consideradas mais degradadas e decadentes, como um corpo ou organismo vivo que precisava se curar de uma moléstia e precisava retirar as partes doentias. “A cidade com suas principais variáveis espaciais aparece como um objeto a medicalizar.”[22] As regiões dos bairros freqüentados especialmente pelos negros e mestiços e os cortiços habitados pelos imigrantes operários eram as mais difamadas “(...) os cortiços são vistos tanto como um problema de controle social dos pobres quanto como uma ameaça as condições higiênicas da cidade.”[23] Essa seleção se dava pelos altos índices de imoralidade, criminalidade, mendicância e de prostituição. Certas localidades eram bem conhecidas por serem de alta periculosidade e pelas suas mal afamadas atividades ilícitas, como as zonas de meretrício. Por exemplo, a região do Sul da Sé (Imagem: 6).




Imagem 6 – Vincenzo Pastore: Casario da Rua da Esperança, esquina com a Travessa do Quartel, zona do baixo meretrício, região da atual Praça da Sé. São Paulo 1910 Acervo: Instituto Moreira Salles. São Paulo - SP http://homolog.ims.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/

É interessante observar que a cruzada pela modernização e higienização urbana concentrou-se mais intensamente nas áreas onde predominava o elemento nacional. Por exemplo, o Largo do Rosário, Vale do Anhangabaú e Sul da Sé, considerados degradados e perigosos pelas autoridades políticas. “De maneira geral, (...), nota-se, a partir dessas imagens do Sul da Sé, que essa região deveria ser frequentada e habitada por uma população no geral pobre e com uma significativa presença da parcela nacional, desde os tempos da escravidão.”[24] Essa população nacional encontrava nessas áreas um local para suas manifestações sociais e culturais, principalmente atividades de batuque e capoeira negra, que infelizmente destoavam dos compromissos de mudanças urbanísticas. “A delimitação de espaços coletivos, pelo contrário, pode ser vista como uma restrição e uma exclusão, como o fim de um direito costumeiro.” [25] Esforçavam-se em manterem vivos seus costumes, sua cultura e hábitos de vida numa cidade em intensa mutação. “(...), as classes populares opõem uma resistência viva ou surda contra a espe­cialização progressiva e a delimitação de espaços funcionais.” [26] Foi na gestão de Washington Luiz[27] que a politica de remodelização e limpeza do centro da cidade intensificou-se, retirando os “incovenientes” do processo de urbanização da cidade. “Era uma velha crença do século XVIII que o ar tinha uma in­fluência direta sobre o organismo, (...) Daí a necessidade de abrir longas avenidas no espaço urbano, para manter o bom estado de saú­de da população.”[28] (Imagem: 7).




Imagem 7 – Aurélio Becherini: Trabalhos de demolição dos prédios desapropriados para o alargamento da Rua Libero Badaró. São Paulo, 1912. Fonte: Livro: Aurélio Becherini, São Paulo: Editora Cosac Nayfy, 2009, p.77 Acervo: Biblioteca Setorial de ciencias Humanas - Universidade Estadual de Londrina - PR

A sistemática política de demolições e reurbanização dessas regiões consideradas decadentes e perigosas, e a conseqüente expulsão dos moradores para áreas periféricas, desarticularam a cultura existente. Carlos J. F. dos Santos:

A Igreja foi então transferida, por volta de 1903, do Largo do Rosário para o Paissandu, existindo até hoje numa das regiões também tachada como perigosa pelas autoridades, em decorrência dos que a frequentavam. Percebe-se deste modo que, apesar da mudança, a Igreja e seus arredores continuaram sendo um ponto de encontro e de crença da parcela nacional pobre da população. O antigo Largo do Rosário, por sua vez, foi reurbanizado e rebatizado com o nome de um dos prefeitos que mais se empenharam nessa modernização europeizante: Conselheiro António Prado. Agentes da modernização optaram pela destruição não só física, mas também de valores historicamente construídos, buscando a reconstrução sem contradições e procurando oferecer um novo significado àquele espaço. Novamente é possível discutir que a procura pela remodelação arquitetônica de São Paulo esteve relacionada à formulação de uma nova percepção do que deveria ser a cidade e seus lugares, à tentativa de eliminação de tradições inconvenientes e à marginalização dos indesejáveis.[29]

A política de urbanização e modernização da cidade de São Paulo prosseguiu em sua cruzada de higienização dos bairros antigos e populares da Paulicéia durante toda a Primeira República, segregando e isolando regiões inteiras e marginalizando sua população. Paradoxalmente ao movimento de reforma eugenica e urbanistica, foi durante esse mesmo periodo historico que houve um aumento sem precedentes da construção de aglomerados habitacionais precários e superlotados, conhecidos como cortiços.[30] Localizavam-se principalmente no centro historico da cidade (Santa Efigenia, Bixiga e Bom Retiro) ou proximos das regiões industriais (Brás, Mooca, Barra Funda) concentrando as populações imigrantes que trabalhavam nas industrias. “Estima-se que a terça parte das habitações existentes em São Paulo era composta de corti­ços.” [31] (Imagem: 8) Na definição de Lucio Kowarick:

O cortiço é a modalidade de habitação proletária mais antiga em São Paulo. (...), está ligado aos primórdios da industrialização que se iniciou nas últimas décadas do século XIX. A partir desta época, a população da cidade que, em 1890 tinha 65.000 habitantes, aumenta vertigino­samente em decorrência do grande fluxo de imigrantes. (...). Assim, o cortiço desponta e expande-se em decor­rência de uma nova relação de exploração, na qual o traba­lhador precisa adquirir, com o salário que aufere, os meios de vida para sobreviver. (...). Mão-de-obra sub-remunerada, não tem condições de adquirir ou alugar uma casa, pois o custo da mercadoria habitação transcende em muito o preço da força de trabalho. Desta forma, (...), o cortiço, subdivisão de cómodos em maior número possível de cubículos, aparece como a forma mais viável para o capitalismo nascente reproduzir a classe trabalhadora, a baixos custos.[32]




Imagem 8 – Geraldo Horacio de Paula Souza: Cortiço na Rua Conselheiro Ramalho, 232, Bixiga, 1920. Fonte: Cortiços em São Paulo 1919-1925. Acervo da Biblioteca Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, São Paulo. Reprodução do Laboratório da FAUUSP.

Pelas descrições de Kowarick, percebesse que o surgimento dos cortiços no final do século XIX estava inserido na lógica do capitalismo: o aumento da produção industrial e a reprodução do proletariado. Sendo assim, atendia uma demanda habitacional para os imigrantes trabalhadores da indústria paulista. Entretanto, as acomodações eram péssimas e as condições higiênicas eram muito precárias. “O cortiço é a longa fila de cómodos geminados, que dão para um pátio ou corredor comum e que tem ba­nheiro, cozinha e tanque coletivos.”[33] Apesar de ser o elemento hegemônico, os imigrantes não eram os únicos a constituírem a população dos cortiços, havia também partes das famílias dos nacionais, tornando-se um ambiente bastante heterogêneo. “Alta intensidade de vida social em espaço exíguo. Nele se misturam trabalhadores e vagabundos, famílias e solteiros, negros, brancos e mulatos nascidos no Brasil, bem como portugueses, espanhóis, ita­lianos.”[34] Na contramão das contruções desses aglomerados habitacionais para o alojamento dos imigrantes, o governo implantou leis que proibiam a construção de cortiços em São Paulo, ironicamente, não eram cumpridas e as autoridades sanitaristas faziam visão grossa, pois se as ditas leis fossem seguidas rigorosamente, os cortiços nem existiriam na cidade de São Paulo.

Evidentemente que nenhumas dessas regras foram obedecidas, pois os cortiços continham todos os aspectos proibitivos mencionados no Código Sanitário, enfim, era uma lei de letra morta. Mas, como pode ser explicada a indulgencia do governo e da sociedade em relação aos cortiços, se comparado a demolição e reformulação urbanística dos outros bairros empobrecidos de São Paulo? Possivelmente o fato de a população imigrante ter se fixado nesses lugares tenha sido um dos fatores determinantes, o povo italiano não aceitava passivamente as intervenções do Estado sobre o território deles, sobre sua cultura e comportamento. Apesar de não terem sofrido intervenções tão radicais como aconteceu nos bairros mais populares, os cortiços também eram alvos de intervenções através da Policia Sanitária. “Uma das formas de ação sobre o cortiço é a instituição da Polícia Sanitária, órgão criado na última década do século XIX e ligado à Secretaria do Interior, órgão cuja função é penetrar neste local sempre que necessário.”[35] A escritora Zelia Gattai em Anarquistas graças a Deus descreve os italianos habitantes dos cortiços como pessoas perigosas e encreiqueiras, qie expulsavam os servidores publicos de seus dominios urbanos:

Passei a admirar seus moradores desde que soube terem eles destruído uma carrocinha de cachorro, pondo os laçadores a correr debaixo de tabefes e pontapés. Nun­ca mais voltaram. Polícia não circulava na Caetano Pinto, os ha­bitantes faziam suas próprias leis. Não havia soldado que por ali se aventurasse. População extremamente religiosa, profundamente patriota, de sangue quente.[36]

Além disso, os italianos formavam a força de trabalho das indústrias paulistas, foram eles, especialmente os anarquistas, que se organizaram e criaram os primeiros sindicatos operários e assim conseguiam barganhar politicamente com o patronato e o governo, algo impossível para os nacionais. Sendo assim, o Estado e a sociedade tinham que intervir nesses territórios “italianos” de forma mais branda e sutil do que ocorrera nas regiões populares citados acima. Com o passar dos tempos, esses cortiços se converteram em bairros italianos tradicionais da Paulicéia, contudo os problemas sociais continuavam, mas o governo não chegou a intervir nesses espaços urbanos. Tanto imigrantes quanto os mestiços eram igualmente pobres, porém, na mentalidade das autoridades políticas e da sociedade paulistana, os italianos eram social e culturalmente mais toleráveis. Munidos desses preconceitos, a população nativa continuará sendo segregada a espaços urbanos cada vez mais distantes dos serviços públicos, relegados a habitarem nas periferias.

Toda cidade moderna teve em algum momento de seu processo histórico uma fase de reestruturação urbana, na qual as classes sociais entram em conflitos para reforçarem suas posições e seus espaços nas cidades. Foi durante as primeiras décadas do século XX que esses conflitos socioculturais e urbanísticos fundamentaram e definiram a configuração populacional e o perfil urbanístico da cidade de São Paulo na atualidade.

Referencias Bibliográficas

CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição. Campinas, SP Editora da Unicamp, 2001

DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo de. Indústria, trabalho e cotidiano: Brasil, 1880 a 1930. São Paulo: Editora Atual, 1991.

ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas e Reginaldo Forti. 1ª Edição. São Paulo: Editora Global, 1985.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 11ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979.

GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1984.

KOWARICK, Lúcio & ANT, Clara. Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

__________________. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987.

PINHEIRO, Paulo Sérgio e HALL, Michael M. A Classe operária no Brasil (1889 – 1930): condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado. Campinas, Brasiliense, 1981.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottman. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (Coleção Oficina da História).

ROLNICK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo. Studio Nobel: Fapesp, 1997

________________. São Paulo - início da industrialização: o espaço e a política. In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 - 1915. São Paulo: Anablume/ Fapesp, 2003.

SANTOS, Marco A. C. dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.

SCHWARCZ, Lilia M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.


--------------------------------------------------------------------------------

[1] Esse artigo acadêmico faz parte do segundo capitulo da dissertação de mestrado cujo titulo: A instrumentalização da infância: estudo sobre as condições sociais e as políticas públicas das crianças marginalizadas na cidade de São Paulo (1888 – 1927)

* Mestrando do Programa de pós-graduação em Historia Social - Universidade Estadual de Londrina - PR

[2] SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 - 1915. São Paulo: Anablume/ Fapesp, 2003, p. 33

[3] SCHWARCZ, Lilia M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.68

[4] ROLNICK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo. Studio Nobel: Fapesp, 1997 (Coleção cidade aberta) p.69

[5] ROLNIK: A cidade e a lei... Op. cit. p.71

[6]Idem, p.73

[7] Idem, p.102

[8] SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p147

[9] ROLNIK, Raquel. São Paulo - início da industrialização: o espaço e a política. In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.p. 79

[10] O termo haussmannização vem da atuação politica do prefeito de Paris Georges-Eugène Haussmann (1853 – 1870) onde durante a sua gestão implantou uma reforma urbanística na cidade parisiense, abrindo largas avenidas e bulevares, demolindo e reformulando cortiços e bairros perigosos. Fonte: Wikipédia.

PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução de Denise Bottman. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 (Coleção Oficina da História). p.119

[12] SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p. 67-68

[13] Idem, p.119

[14] Idem, p, 13

[15] Antonio da Silva Prado (1840-1929) tomou posse (...) no dia7 de janeirode1899, sendo o primeiro a receber o título deprefeitoe permaneceu doze anos no cargo, até15 de janeirode1911, (...). Procurou modernizar a cidade, através da construção de pontes e o aterramento de várzeas(...). Foi responsável, em seu mandato, pela implantação do sistema deenergia elétricana cidade, em1900. Fonte: Wikipédia.

[16] SANTOS, Marco A. C. dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. p. 213

[17] Idem, p.93

[18] PERROT: Op. cit. p.273

[19] ROLNIK: São Paulo - início da industrialização... Op. cit. p.79

[20] PERROT: Op. cit. p.273

[21] ROLNIK: A cidade e a lei... Op. cit. p.

[22] FOUCAULT: Op. cit. p.201

[23] CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2ª edição. Campinas, SP Editora da Unicamp, 2001 p.31

[24] SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p.130

[25] PERROT: Op. cit. p.124

[26] Idem, p.122

[27] A Washington Luís, caluniosamente, quando presidente do Estado de São Paulo, foi-lhe atribuída à frase “Questão social é questão de polícia.” Fonte: Wikipédia.

[28] FOUCAULT: Op. cit. p.90

[29] SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p.126

[30] Os cortiços também eram uma problemática social na cidade do Rio de Janeiro, tanto que o livro do escritor naturalista Aluizio de Azevedo narrando às características estruturais e sociológicas dos habitantes de um cortiço carioca, foi um enorme sucesso literário no final do século XIX

[31] A Fanfulla apud PINHEIRO, Paulo Sérgio e HALL, Michael M. A Classe operária no Brasil (1889 – 1930): condições de vida e de trabalho, relações com os empresários e o Estado. Campinas, Brasiliense, 1981. p.42

[32] KOWARICK, Lúcio & ANT, Clara. “Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo” In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 49-50

[33] ROLNIK: São Paulo - início da industrialização... Op. cit. p.80

[34] Idem, p.80

[35] ROLNIK: São Paulo - início da industrialização... Op. cit. p. 81

[36] GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 85

Um comentário:

  1. KAMI SEKELUARGA MENGUCAPKAN BANYAK TERIMA KASIH ATAS BANTUANNYA MBAH , NOMOR YANG MBAH BERIKAN/ 4D SGP& HK SAYA DAPAT (350) JUTA ALHAMDULILLAH TEMBUS, SELURUH HUTANG2 SAYA SUDAH SAYA LUNAS DAN KAMI BISAH USAHA LAGI. JIKA ANDA INGIN SEPERTI SAYA HUB MBAH_PURO _085_342_734_904_ terima kasih.الالله صلى الله عليه وسلموعليكوتهله صلى الل

    KAMI SEKELUARGA MENGUCAPKAN BANYAK TERIMA KASIH ATAS BANTUANNYA MBAH , NOMOR YANG MBAH BERIKAN/ 4D SGP& HK SAYA DAPAT (350) JUTA ALHAMDULILLAH TEMBUS, SELURUH HUTANG2 SAYA SUDAH SAYA LUNAS DAN KAMI BISAH USAHA LAGI. JIKA ANDA INGIN SEPERTI SAYA HUB MBAH_PURO _085_342_734_904_ terima kasih.الالله صلى الله عليه وسلموعليكوتهله صلى الل


    KAMI SEKELUARGA MENGUCAPKAN BANYAK TERIMA KASIH ATAS BANTUANNYA MBAH , NOMOR YANG MBAH BERIKAN/ 4D SGP& HK SAYA DAPAT (350) JUTA ALHAMDULILLAH TEMBUS, SELURUH HUTANG2 SAYA SUDAH SAYA LUNAS DAN KAMI BISAH USAHA LAGI. JIKA ANDA INGIN SEPERTI SAYA HUB MBAH_PURO _085_342_734_904_ terima kasih.الالله صلى الله عليه وسلموعليكوتهله صلى الل

    ResponderExcluir

opinião e a liberdade de expressão

Manoel Messias Pereira

Manoel Messias Pereira
perfil

Pesquisar este blog

Seguidores

Arquivo do blog