segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Porto Submerso: desafios para o patrimônio portuário de Belém-PA no século XXI

















por Luciana Martins Furtado





Desembarque de mercadorias no Porto de Belém (1910)





Sobre a autora[1]



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Armazéns de memória social: o porto de Belém



Em outubro de 2009, o patrimônio portuário[2] de Belém do Pará completou seu primeiro centenário sob o sentimento de um futuro impreciso, imbricado em diferentes expectativas sobre sua funcionalidade econômica, seu significado patrimonial e sua integração com a sociedade. Hoje começa a ser cada vez mais discutida a problemática das intervenções que o patrimônio portuário vem sofrendo e das que poderá sofrer no futuro, tanto em sua dimensão material quanto imaterial-simbólica. Contudo, essas discussões até aqui demonstraram um claro controle unilateral do poder político e das autarquias locais em questões que deveriam envolver diversos segmentos da sociedade, o que evidencia uma apropriação não negociada dos espaços socialmente construídos em Belém.



A capital do Pará organizou o seu espaço por meio da dinâmica do estuário, que influenciou a ocupação humana, o uso do território, as condições de sociabilidade e o universo das relações comerciais (Lopes & Coelho, 2003). Ao longo do seu processo de ocupação, a colocação de barreiras físicas entre a cidade e o rio rompeu paulatinamente a relação homem com o waterfront, tão importante para a formação identitária da sociedade belenense. É inevitável a admissão da ideia de que os habitantes da Belém continental vivem atualmente de costas para o rio (Acevedo & Chaves, 1997) e parecem ter se desligado emocionalmente dos espaços que demonstram essa interface.



Desse modo, o porto institucionalizado de Belém mostra-se de uma forma singular para a cidade: tombado no ano de 2000, como importante monumento arquitetônico e paisagístico e símbolo da memória coletiva local, o porto de Belém aparece como uma das formas mais contundentes de privatização dos espaços do waterfront da cidade, limitadora do acesso dos indivíduos ao rio. Inserido na paisagem cultural da cidade, o porto de Belém tornou-se, aos poucos, um monumento invisível, esquecido na memória local; transformou-se em um patrimônio submerso.



Numa atual perspectiva de reabilitação desse espaço como um importante elemento constitutivo da identidade local, que demonstre a relação entre o homem e o rio, percebe-se que os referenciais de identidade construídos em torno do patrimônio portuário de Belém estão se esvaindo da memória local através do processo de distanciamento da sociedade com esse espaço. E esse processo vem se dando pela privatização do patrimônio público através de estratégias de classe, preocupadas com a criação de produtos urbanos, desconsiderando que a cidade é uma construção (obra) de diversos segmentos sociais e que a apropriação dos espaços públicos deve acontecer de forma integrada e participativa (Lefebvre, 1969). Caso contrário, a quem interessará a preservação de um patrimônio que não mais evoque no imaginário coletivo a relevância de sua presença para a formação e reprodução cultural da identidade social?



A patrimonialização de um espaço como o porto de Belém é relevante na medida em que sua preservação salvaguarda a memória social. O porto de Belém, como um “lugar de memória”[3] serve de importante reduto onde a sociedade e em especial os grupos que possuem vivências específicas acumuladas no espaço se reconhecem e se identificam ao evocar imagens, sensações, sentimentos e vivências, revivenciando experiências coletivas que garantem o sentimento de pertencimento importante para a coesão social. Apenas em lugares de memória como este, o sentimento de continuidade com o passado reaparece de certa forma, embora não mais uma memória “vivida” em sua plenitude e liberdade.



Num momento em que a globalização diminui o número de espaços e paisagens significantes e singulares, a reapropriação dos significados simbólicos e afetivos da relação entre a sociedade e o lugar demonstra a importância que esses lugares têm de assumir o papel de espaços de resistência à homogeneização (Santos, 2000: 114) bem como de definidores da identidade local. O patrimônio arquitetônico está inserido, portanto, como um importante elemento de reforço da identidade e peculiaridade local, visto que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (Nora, 1993: 9).



Sendo assim, em seu patrimônio arquitetônico, a cidade acumula camadas de memória onde a comunidade vê partes significativas do seu passado com incalculável valor afetivo. Dessa forma, não há possibilidades de se dissociar a memória do conceito de lugar, seja ela individual ou coletiva[4]. Essas memórias, enquanto fenômeno construído, encontram-se armazenadas nas paisagens urbanas que seriam deste modo, verdadeiros “armazéns de memória social”[5]. O lugar seria, assim,



“um centro de significações insubstituível para a fundação de nossa identidade como indivíduos e como membros de uma comunidade, associando-se, desta forma, ao conceito de lar. (…) A importância de nossa relação para com os lugares ultrapassa a da nossa consciência dessa ligação”[6].



O patrimônio enquanto referencial de identidade cultural ultrapassa, dessa forma, a materialidade do complexo portuário de Belém, totalmente desprovido de sentido se não estiver relacionado às experiências que os indivíduos estabeleceram com o espaço, transformado em lugar por sua apropriação simbólica. Nesse sentido, Henri Lefebvre, que trabalha o espaço como produto histórico, resultado das relações sociais de produção, invoca o direito à cidade através da atitude de rejeição ao afastamento da realidade urbana que muitas vezes se impõe. Para ele a realidade urbana não existe “sem uma reunião de tudo o que pode nascer no espaço e nele ser produzido, sem o encontro atual ou possível de todos os ‘objetos’ e ‘sujeitos’” (Lefebvre, 2008: 32). Portanto, ignorar do urbano classes, grupos e indivíduos, significa estripá-los da sociedade e construir uma urbe fragmentada, cujos custos sociais serão sempre identificáveis.



A cidade expõe inúmeras contradições em suas formas de ocupação e fruição, mostrando-se, assim, um “espaço político”. Tais contradições são nitidamente verificáveis nos projetos e planos institucionais de ordenamento do espaço urbano e os “projetos parciais dos mercadores de espaço” (Lefebvre, 2008: 57) que transformam a cidade em produto. Esses projetos, que acabam ampliando a fragmentação de usos do espaço urbano, segregando os indivíduos, deveriam, ao contrário, integrá-los em seus espaços de trabalho, ócio e lazer, superando essas separações pela apropriação dos espaços socialmente constituídos. Nesse sentido, o direito à cidade é o direito a fruição e apropriação do urbano enquanto obra coletiva e se manifesta como o direito à liberdade, à individualização, à socialização e ao próprio habitat urbano (Lefebvre, 1969:124).



Dessa forma, manter as discussões acerca do patrimônio portuário longe da sociedade belenense é reafirmar seu esquecimento e abandono, é ignorar a percepção da memória como leitura do espaço social, é desqualificar as ligações entre trabalho e experiência cultural que constroem lugares de memória como este. Afinal, não se preserva um bem meramente por seu valor histórico e arquitetônico, mas porque ele possui uma significação para a comunidade em que está inserido e pelo potencial que sua preservação pode vir a ter para a melhoria da qualidade de vida de seus moradores e para a construção de sua identidade cultural e o exercício da cidadania (Oriá, 2001: 138).



A constituição do patrimônio portuário de Belém



A 12 de janeiro de 1616, pelas mãos do colonizador português, nasce a cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará, através da fundação do fortim do Presépio, numa posição estratégica para a defesa do vale amazônico, em um pontal de terra firme e elevada à margem direita do rio Guamá e à direita do rio Pará. Nesse primitivo vilarejo surge o “porto da praia”, localizado em frente à baía do Guajará, à margem esquerda do igarapé do Piry, nas proximidades da atual doca do Ver-o-Peso.



Em meados do século XVII, Belém já configura sua estrutura urbana com dois “bairros”: o da Cidade e o da Campina; o primeiro compreendendo o conjunto urbano formado a partir da fortaleza e da Praça Matriz e o último localizado numa área mais afastada e menos alagada, na margem direita do canal de drenagem do alagado do Piry onde os colonos se firmaram para iniciar a plantação de baunilha e cacau e onde se estabeleceram os capuchinhos da ordem de Santo Antonio, em 1626 (Penteado, 1968).



Ligados por uma ponte estiva, os dois bairros foram, com os contínuos processos de aterramento, ligados por uma via terrestre denominada de Rua dos Mercadores (atual Conselheiro João Alfredo), que ia até o largo onde a ordem dos mercedários levantou seu convento em 1640. Com o passar do tempo, a Rua dos Mercadores passa a atrair grande parte dos comerciantes locais, transferindo o desembocadouro principal da margem esquerda para a margem direita do igarapé do Piry (Penteado, 1972).



Ao longo dos primeiros anos de ocupação, a cidade diversifica suas atividades e transforma o seu primitivo núcleo de defesa em centro comercial e porta de entrada de colonos portugueses. O porto de Belém cresceu, assim, testemunhando o desenvolvimento da cidade, enviando as riquezas da Amazônia para terras distantes e recebendo viajantes, exploradores, contrabando, escravos, informações, costumes e ideologias de outras terras.



O porto de Belém apresenta uma ancestralidade comum a outros portos antigos: a fortaleza incorporada. Antigas fortalezas como a de São Pedro Nolasco e o Reduto de São José, que estavam inseridas na área de afluência portuária, foram demolidas ao longo do século XIX[7], tendo em vista o novo contexto de relativo liberalismo econômico, após a abertura dos portos, em 1808.



A partir daí, no litoral da baía do Guajará, proliferavam trapiches de companhias de navegação que eram constantemente reconstruídos (Penteado, 1972). As vias de escoamento ainda eram incipientes. A aglomeração de repartições, de logradouros públicos, de estabelecimentos comerciais e de serviços acabou por atrair inúmeras sedes de empresas, formando no local uma expressiva concentração de negócios dos mais diversos tipos, que auxiliou na desorganização do centro urbano.



A crescente demanda pela borracha, a partir de meados do século XIX, tornava cada vez mais incompatível a precária estrutura portuária de Belém com a ampliação de seus serviços, e carecia com urgência de investimentos para uma revitalização que permitisse aumentar a capacidade de escoamento e armazenagem das embarcações que aportavam no litoral margeado de insalubres e perigosos trapiches de madeira.



Em 1906, após a elaboração de diversos projetos de reforma do cais de Belém, dentre os quais se destacou o estudo do engenheiro Domingos Sérgio de Sabóia e Silva, o governo federal autoriza a concessão desses melhoramentos ao empresário norte-americano, Percival Farqhuar que também conseguiu conquistar o direito de explorar os serviços portuários após o término das obras, percebendo, assim, as excelentes possibilidades de retorno financeiro num período de ápice da economia gomífera na região.



No dia 7 de setembro do mesmo ano, Farquhar funda a Companhia Port of Pará, inserida num conglomerado de capitais estrangeiros responsável por diversos empreendimentos na América Latina, tais como a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. As obras têm início no ano de 1907. Durante os próximos sete anos é realizado um gigantesco projeto de intervenção urbana como a cidade jamais havia visto, mobilizando milhares de braços e a mais avançada tecnologia internacional.



O projeto previa o aterro da região dos antigos trapiches e dragagem de um canal de 3.300 metros de largura em toda a extensão do cais, com diferentes níveis de profundidade segundo a necessidade de cada tipo de embarcação que o porto fosse receber, indo desde as de pequeno porte, responsáveis pelo serviço de navegação fluvial até as de grande cabotagem e navegação transoceânica. Além disso, a companhia era obrigada, dentre outras coisas, a instalar linhas férreas e de iluminação, abrir uma rua de 30 metros de largura, paralela ao cais, construir armazéns para o depósito de mercadoria e edifícios para a administração e fiscalização governamental dos serviços realizados (Penteado, 1972).



Embora enfrentando problemas, como a grave epidemia de febre amarela que contaminou inúmeros trabalhadores, e as diversas ações judiciais de empresas que protestavam contra o encurralamento de seus trapiches pelas obras de construção, em outubro de 1909, é inaugurada a primeira seção do novo cais numa extensão de 120 metros, composta por um armazém e respectivo canal. A partir de então, é iniciada oficialmente a exploração comercial do porto de Belém pela companhia Port of Pará.



Deve-se lembrar que o porto de Belém não se restringe apenas a região dos 12 armazéns no centro de Belém. O terminal de Miramar, em Val de Cães, também faz parte desse complexo, já que era nesse ancoradouro que ficavam as áreas de depósito de carvão e água e as oficinas de fundição de ferro que recebiam os pré-moldados da Europa. Esta propriedade, longe do centro urbano, passou a servir de residência aos diretores da companhia que, ali instalados, ficavam isolados do foco da epidemia no centro de Belém (Penteado, 1972).



Embora a Port of Pará tenha obtido a concessão da orla desde o igarapé do Uriboca, no rio Guamá até a ponta do Mosqueiro, as obras se restringiram ao centro urbano de Belém que ia da desembocadura do Ver-o-Peso até o igarapé das Almas, também conhecido como igarapé das Armas, onde hoje se localiza o complexo Ver-o-Rio.



A inauguração do novo porto de Belém trouxe consigo uma nova proposta urbanística para toda a área de circunferência das obras, ao exigir a abertura e calçamento de novas ruas, a transformação de igarapés em canais, o desenvolvimento da infraestrutura de transportes e a construção de novos prédios administrativos que valorizaram o bairro e o tornaram altamente requisitado pelo seu caráter comercial.



Os bairros do Reduto e da Campina, no entorno do porto, transformaram-se em áreas de atividade industrial e comercial, respectivamente. A expansão dos usos de comércio e serviços promoveu o gradativo abandono do local pelas famílias que moravam às proximidades, por conta da degradação ambiental, como a poluição sonora e do ar promovida pela crescente agitação, ao lado do próprio envelhecimento dos prédios. Essa modificação foi responsável pela perceptível expansão da ocupação habitacional para os bairros de Nazaré, Umarizal e Batista Campos, que passam a configurar o novo centro residencial das classes mais abastadas.



As residências do entorno do porto passaram, então, a ser ocupadas por estratos de rendas mais baixas, resultando na deterioração dos imóveis, alguns dos quais foram transformados em cortiços. Com o passar do tempo, surgiu nas imediações do centro uma área fisicamente degradada, composta, em sua grande maioria, por residências antigas, onde, ao lado do uso habitacional, convivem bares e hotéis baratos, prostíbulos e outros estabelecimentos característicos de regiões portuárias (Ravena, 2003).



Desse modo, a construção do atual complexo portuário trouxe inevitáveis impactos urbanos. Toda a composição urbanística do centro da cidade e das áreas de entorno sofreu adaptações de usos e transformações na forma de ocupação socioeconômica do espaço. Hoje, o entorno degradado da área portuária, incentivado pela ausência de políticas públicas para sua conservação, além de afastar a população indica a necessidade de uma readequação de suas funções, explorando as potencialidades dessa área enquanto patrimônio cultural.



A interiorização do porto de Belém



A crise da borracha, a partir de 1912, interferiu diretamente na dinâmica do porto de Belém, cuja rentabilidade diminuía progressivamente em razão da não entrada de capital estrangeiro no pós-guerra. Após 1912, decaíram as rendas, enquanto que as despesas da companhia aumentaram entre 1907 e 1920, em quase 100%. O contrato com o governo brasileiro as cobriu, pela garantia da remuneração do capital empregado nas obras portuárias (Penteado, 1972).



Nesse período teve início uma série campanhas de estatização dos empreendimentos do capital estrangeiro no Brasil, que atingiu o ápice com a Revolução de 1930, inaugurando um período conhecido pela contundente intervenção do Estado na economia. A partir da consolidação do Estado Novo (1937 – 1945), implantado por Getúlio Vargas, o intervencionismo governamental adquire contornos de ideologia dominante.



Em 1940, por força do Decreto Lei n° 2.142, a direção do porto de Belém é assumida pelo Ministério da Viação e Obras Públicas. No mesmo ano, o Governo Federal passou a coordenar o maior porto da Amazônia e as empresas de navegação, pela encampação da Port of Pará e da Amazon River Steam Navigation Company Ltd. Das duas empresas surgem os Serviços de Navegação na Amazônia e Administração do Porto do Pará (SNAPP) que transfere às autoridades governamentais o controle do porto de Belém.



Os SNAPP tiveram de se firmar no início da tumultuada década de 1940, em meio a uma cidade que sofria indiretamente as consequências da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Contudo, esse mesmo conflito irá ajudar na revitalização dos negócios de exportação do porto de Belém, através do acordo de cooperação mútua no esforço de guerra firmado em 1941, entre o governo do Brasil e dos Estados Unidos: enquanto que o Brasil comprometia-se a abastecer os EUA com matérias-primas para a indústria bélica, como a borracha amazônica, o governo norte-americano, por outro lado, enviaria à população gêneros de consumo e combustíveis que suprissem, em parte, a carência decorrente da guerra.



A partir da criação da Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), na década de 1950, a infraestrutura de transportes apresentou significativos avanços, embora o subsetor portuário tenha sido acometido por certo enfraquecimento. Apesar do relativo crescimento das exportações, os SNAPP sofriam com a falta de uma tonelagem mínima para sobreviver à concorrência com outras companhias de navegação, que possuíam embarcações mais novas e tecnologia mais moderna para o tráfego fluvial e transoceânico. Em meio a esses problemas numéricos e a falta de incentivos financeiros capazes de garantir seu reaparelhamento, a autarquia federal logo se afoga num cenário interno de disputas partidárias e por cargos públicos que desestruturam o setor administrativo, levando a instituição quase à falência (Penteado, 1972).



Em vista dessa situação, com o decreto-lei n° 155 de 10 de fevereiro de 1967, o governo federal estabelece o fim da autarquia, criando, em substituição, a Companhia das Docas do Pará (CDP) e a Empresa de Navegação na Amazônia S/A (ENASA – pelo o decreto n° 61.301), à primeira cabendo a promoção da administração dos portos organizados e terminais do Pará e a segunda a exploração do transporte aquaviário da bacia amazônica. Como empresas de economia mista, sob a jurisdição do Departamento Nacional de Portos e Vias Navegáveis, a CDP e a ENASA, possuíam a vantagem de não serem regidas por uma legislação federal, geralmente desajustada à região amazônica, o que facilitaria a recuperação institucional.



Contudo, a nova companhia, que anos mais tarde passa a se chamar simplesmente Companhia Docas do Pará, precisa se adaptar a um novo cenário em transição aos portos urbanos. Belém, até então uma cidade isolada do restante do país, cujo porto era o principal ponto de partida e chegada de pessoas e mercadorias, começa a ser ligada ao sul pela abertura de eixos rodoviários a partir da década de 1960, política esta que visava o desenvolvimento econômico e a ocupação da região amazônica e que foi intensificada pelo Programa de Integração Nacional, implantado a partir do governo do presidente Garrastazu Médici (1969-1974). Essa situação representou um grande desafio ao porto de Belém que foi obrigado a ampliar e redirecionar seus investimentos em novas frentes a fim de não submergir.



Além da concorrência com a recém-introduzida malha rodoviária, o porto de Belém também teve que se adaptar ao início do processo de automatização, com a introdução dos contêineres e de modernos e gigantescos navios de carga, cuja estrutura exigia maior especialização do movimento portuário e dos trabalhadores do porto. Essa nova demanda salientou a dificuldade que portos tradicionais, como o de Belém, incrustado no meio do centro urbano, começaram a ter para acomodar as novas logísticas portuárias a suas limitadas instalações. Esse processo coincidiu com outro, o da desindustrialização da área dos portos. Além de perder a importância como espaços de comercialização também perderam a influência como áreas de indústrias marítimas (Cañete, 2003), incentivados também pelo aumento da pressão imobiliária pelas áreas centrais da cidade.



Essa nova realidade, que afetou inúmeros portos tradicionais ao redor do mundo, está diretamente relacionada ao esvaziamento e decadência dos portos urbanos e de seu entorno e com o movimento de interiorização desses núcleos portuários, que foram transferidos para áreas mais afastadas, onde terminais mais modernos seriam preparados física e tecnologicamente para essas novas demandas.



Nesse sentido, a partir da década de 1970, a Companhia Docas do Pará inaugura novos portos e terminais, refletindo a relação entre a dinâmica regional de desenvolvimento econômico e as novas demandas portuárias. Sendo assim, destacam-se as inaugurações dos portos de Altamira, Itaituba e Santarém, em 1974, de Óbidos e Marabá, em 1976 e do porto de Vila do Conde, em Barcarena, no ano de 1985, criado em função do desenvolvimento do complexo bauxita, responsável pela significativa ampliação da capacidade de movimentação de carga da companhia.



A Companhia Docas do Pará transformou-se num holding responsável por dez portos da região amazônica, que estabelecem relação com os maiores mercados consumidores internacionais. Porém, desde o fim do milagre econômico na década de 1980, Belém se viu em um processo de desestruturação de sua atividade portuária em função da falta de investimentos por parte do Estado (Lopes & Coelho, 2003).



O porto de Belém, dessa forma, transferiu boa parte de suas atividades para o terminal de Vila do Conde, em Barcarena, e desde então vem enfrentando o dilema típico dos portos urbanos tradicionais: como conciliar as necessidades de expansão da estrutura portuária e a preservação histórica desse patrimônio subutilizado e lidar, ao mesmo tempo, com os espaços ociosos numa cidade carente de lugares de uso público e que vem enfrentando a face mais agressiva de interesses particulares de grupos políticos e imobiliários?



A privatização das propostas públicas de intervenção do patrimônio portuário



Nas últimas décadas do século XX, tem se verificado mudanças na estrutura de planejamento urbano das cidades globalizadas, que venha a ser orientada por um plano diretor urbano. Essa nova mentalidade gestada pelo princípio neoliberal vem provocando novos debates acerca da requalificação dos espaços centrais da cidade:



“Com a crise do petróleo, o esgotamento do modelo fordista, a falência do Estado e a emergência do mercado globalizado, o novo capitalismo neoliberal não podia ignorar, por um lado, o potencial do patrimônio instalado, a acessibilidade e o simbolismo das áreas centrais e, pelo outro, os vazios, as descontinuidades e os limites internos ao crescimento e à expansão da economia. Junto com a expansão da consciência popular, a consolidação dos movimentos comunitários e ambientalistas, e inserido no paradigma do desenvolvimento sustentável, este novo contexto levou as metrópoles do primeiro mundo a perseguir o renascimento de seus centros, através da reutilização das áreas centrais, da recuperação de suas arquiteturas e da valorização cultural de suas ambiências.” (Del Rio, 2001)



Nesse sentido, os complexos portuários ao redor do mundo têm entrado na pauta dos projetos urbanísticos e planos diretores dos municípios, sendo repensados como lugares de interesse social que possam solucionar o déficit de espaços públicos nas cidades. O atual paradigma do desenvolvimento sustentável vem afetando a forma da sociedade encarar o seu patrimônio edificado, apontando para a concentração de esforços e investimentos no sentido de sua reutilização, requalificação e diversificação de usos que possam ser dados àquele espaço.



O porto de Belém, cuja funcionalidade econômica vem sendo questionada nas últimas décadas, possui uma característica que vem a ser um ponto chave nas discussões sobre a redefinição do seu uso, que é o fato de estar incrustado em uma região central – de entorno do centro histórico da capital – onde se concentram os principais problemas que as políticas urbanas vêm enfrentando nos últimos anos: a pressão imobiliária, a questão dos transportes e do tráfego urbano e as próprias políticas públicas de reapropriação e reabilitação do centro histórico e de seu entorno.



As experiências de intervenção do patrimônio portuário de Belém iniciaram-se ainda no final da década de 1990, com a elaboração do projeto da Estação das Docas, que foi inaugurada no ano de 2000. A Estação das Docas é constituída pelos três primeiros galpões de ferro do porto de Belém, há décadas abandonados, que foram cedidos pela Companhia Docas do Pará ao governo do estado, que se inspirou nos modelos internacionais de requalificação das áreas portuárias degradadas e/ou abandonadas, como os portos de Boston e Baltimore, nos Estados Unidos.



Grosso modo, o governo do estado optou por selecionar e executar apenas um elemento dos projetos acima citados: a restauração e adaptação dos galpões para um novo uso, através da proposta dos malls comerciais abertos, que são complexos de lojas, feiras, bares e restaurantes especializados que viraram febre nos projetos intervencionistas das áreas portuárias ao redor do mundo, no final do século XX.



Contudo, é necessário salientar que o projeto de restauração das instalações físicas e a requalificação de uso do espaço é somente um passo de um planejamento estratégico muito mais amplo, que não se restringe apenas à estrutura física do porto, pois esta é apenas um pequeno elemento de um processo de requalificação de todo o centro histórico do entorno, que dê ênfase ao waterfront.



A experiência estrangeira, principalmente das áreas portuárias dos Estados Unidos, tornaram-se modelos referenciais inevitáveis para as demais áreas portuárias decadentes ou em potencial em grandes cidades ao redor do mundo[8]. Todavia, o sucesso da apropriação desse modelo internacional de revitalização exige adaptações à cultura local, partindo-se do princípio da participação da sociedade civil nas propostas de reabilitação, o que, no caso de Belém, foi totalmente desconsiderado.



Em paralelo, deve-se aceitar que os modelos internacionais de revitalização das áreas portuárias engendraram um processo contínuo de planejamento estratégico e ações integradas, pela colaboração entre poder público, privado e a comunidade, para maximizar os investimentos e a implementação de um plano diretor que aceite um planejamento de longo prazo como este. E esse vem a ser o grande problema de Belém.



O fato desse conjunto de projetos requererem um planejamento estratégico político amplo, integrado e de execução mais longa que permite o habitual “tempo político” não parece interessar aos poderes públicos em geral, que possuem a imperativa necessidade de retornos imediatos para a reprodução de seu poder de barganha política frente à opinião pública.



A política de investimentos executada na capital paraense ainda objetiva o retorno a curto e médio prazo e as disputas político-partidárias e entre as diferentes instâncias do poder municipal e estadual têm levado Belém a ser o modelo das descontinuidades de planos e projetos, indicando a contínua privatização do interesse público e dos investimentos, em detrimento aos interesses privados e oportunistas de uma pequena parcela da sociedade.



Esse vem a ser o principal impedimento para a execução de qualquer tipo de plano diretor na capital paraense que preveja um programa amplo de reabilitação de seu centro histórico e entorno, embora este esteja delineado no atual Plano Diretor do Município[9]. E isso torna inviável qualquer planejamento para a requalificação, restauração e preservação do complexo portuário de Belém, que vai muito além da mera restauração de um ou dois armazéns de ferro.



As críticas ligadas à proposta da Estação das Docas são exemplares de projetos privatizados, que desqualificam a participação da sociedade enquanto usuária desse espaço. O complexo da Estação das Docas foi apropriado por uma pequena camada populacional de média e alta renda, e tem as suas atividades intimamente ligadas ao turismo, o que distancia ainda mais a população local do espaço. Dessa forma, aquilo que em teoria, pelo discurso da gestão estadual, pretendia reaproximar a sociedade local de seu waterfront, reconectando as referências de identidade cultural do belenense com o rio, teve o efeito oposto, reafirmando a função política do espaço como meio de segregação social.



Outro exemplo de intervenção problemática foi o projeto Ver-o-Rio, da prefeitura de Belém[10]. O projeto, executado por grupo político-partidário de oposição ao governo do estado, propôs-se a fazer frente à Estação das Docas ao sublinhar o caráter “popular” do produto final. De acordo com a Companhia de Turismo de Belém (Belemtur), que administra o complexo desde 2001, o Ver-o-Rio é um pedaço de orla resgatada depois de anos de ocupação inadequada e devolve o caráter ribeirinho de Belém e o direito da população de conviver com o rio.



Embora essa proposta, aparentemente tenha tentado uma adequação à realidade local, as descontinuidades de gestão política demonstraram a inssustentabilidade daquele espaço que, como muitos outros, foi gestado por objetivos político-partidários e não por interesse pelo desenvolvimento social. Hoje, o Ver-o-Rio sofre silencioso abandono e tornou-se local de mendicância, marginalidade, prostituição e consumo de drogas.



Nos últimos anos a gestão do porto de Belém vem elaborando propostas de intervenção do núcleo portuário com a finalidade de explorar as vocações que o porto possa apresentar para contribuir ao desenvolvimento da economia local e para a geração de emprego. Nesse sentido, o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ)[11] da Companhia Docas do Pará visa dotar a capital de uma área portuária requalificada na qual integre as atividades econômicas do porto com outros setores, objetivando a otimização de seus serviços, ampliados para fins ligados ao turismo, à cultura e ao lazer.



Esse plano propõe a revitalização da região portuária por meio de algumas medidas como a reforma urbanística no bairro do Reduto, através de melhorias na qualidade ambiental, a partir da criação de novas áreas verdes, vias arborizadas e da reabertura pública da Rua de Belém, interligando-a com a Av. Pedro Álvares Cabral, com o objetivo de minimizar os conflitos no trânsito, auxiliando no escoamento do tráfego de veículos.



O PDZ também prevê a readequação de algumas áreas de armazéns (9A e 10A), para se adéquem ao atendimento da movimentação de passageiros do transporte fluvial e destinando os espaços remanescentes a instalações administrativas. Já o que veio a causar polêmica, foi a proposta do desmonte e reposicionamento dos armazéns 11 e 12 para um local distante da faixa do cais e a remoção dos guindastes de pórtico existentes, hoje obsoletos, para que o pátio de contêineres seja ampliado, aumentando, desse modo, a capacidade de armazenamento de mercadorias destinadas à exportação. De acordo com o PDZ:



“a expansão da área de estocagem dos berços preferenciais de navios de contêineres poderá ser obtida com a integração de parte da Rua Rui Barata ao espaço operacional já existente, inclusive a área à retaguarda da referida travessa, a qual deverá abrigar o novo prédio a ser construído pelo reposicionamento dos antigos armazéns 11 e 12, respeitados os conceitos e estilos arquitetônicos e históricos a serem preservados (…) a remoção dos guindastes existentes nos berços 4 e 5 e o reposicionamento dos armazéns 11 e 12 ficará condicionada à obtenção das licenças a serem conseguidas nas instituições responsáveis pelo patrimônio histórico” (CDP-PDZ, 2003: 6)



Embora a Companhia Docas do Pará admita acima que os armazéns, como parte integrante do complexo tombado pelo estado[12], sejam de competência do ente jurídico responsável por seu tombamento – no caso pelo Departamento de Patrimônio Histórico Artístico e Cultural do Estado do Pará (DPHAC-PA) –, o que se verificou, na prática foi a total desqualificação e desconsideração das atribuições legais do órgão de preservação pela Companhia proprietária do porto de Belém, visto que mesmo com a solicitação negada, a proposta de remanejamento dos armazéns ainda é uma das prioridades reais da Companhia.



Tal fato parece mais salientar a fragilidade das políticas públicas de proteção ao patrimônio cultural da cidade do que demonstrar a força política da Companhia gestora do porto, pois é indiscutível que os órgãos de preservação ainda não conseguiram se impor frente à concepção moderna de ocupação pragmática das cidades, vista através dos aspectos de racionalização econômica do espaço que renegam os componentes históricos e estéticos do urbanismo. Embora se deva reconhecer as necessidades de ampliação da logística do espaço portuário em Belém, que evidenciam as demandas econômicas atuais, as propostas para sua viabilidade resultam sempre em prejuízo aos conjuntos urbanos, transformados em lugares que negam sua história e memória a despeito da imperativa modernidade urbana.



Após uma série de discussões entre Ministério Público[13], governo Estadual e CDP, já está em curso o processo de inventariamento dos dois galpões, cujo remanejamento ainda aguarda um projeto para a requalificação e readequação para novos usos, o que demonstra a contínua prática dos poderes públicos locais em priorizar as contingencias econômicas e as demandas políticas em detrimento do patrimônio histórico e da opinião pública local, nas raras vezes em que esta é consultada. Essa prática pode ser observada em inúmeros projetos incompletos encomendados pelos poderes públicos locais, que planejam a restauração de um patrimônio edificado da cidade sem a elaboração de um plano de gestão ou projeto de adequação de uso daquele espaço, dando origem a complexos arquitetônicos privatizados e obsoletos no sentido da sua apropriação pública mais ampla.



Os imbróglios políticos e a fragilidade dos órgãos de preservação do patrimônio cultural apontam apenas para uma saída: a imperativa necessidade da participação da sociedade como gestora de seu patrimônio. É importante ressaltar que toda a normatização legal elaborada durante boa parte do século XX acerca da conservação dos bens patrimoniais, atribuiu ao Estado o papel central na elaboração de políticas de proteção e conservação, por meio de projetos de planejamento nacional, regional e local. Apenas nas últimas três décadas é que se vem discutindo o papel da iniciativa privada e da sociedade civil como fundamentais para a conservação e preservação de seu patrimônio.



Assim, cada vez mais a participação social integrada no processo de valorização de sua herança cultural aponta para o sucesso das ações de preservação patrimonial. Mas, para isso, a sociedade civil precisa admitir e ampliar sua responsabilidade em salvaguardar seu patrimônio cultural ao lado dos órgãos públicos responsáveis, através de práticas criativas de incentivo à conservação e preservação, da articulação da comunidade e da atração de novas formas de investimentos no setor, incentivando o interesse participativo do cidadão.



Conseguir o apoio da comunidade é essencial para a sustentabilidade de projetos como este, não somente expondo o retorno social, através da melhoria da qualidade de vida e da geração de renda, mas ampliando a participar desta no processo de gestação do projeto, demonstrando desde o início respeito à memória coletiva, ao patrimônio e ao contexto preexistente físico-espacial e sociocultural.



Desafios para o patrimônio portuário de Belém no século XXI



Não é possível desvincular a paisagem urbana da paisagem portuária de Belém. A discussão sobre as propostas de requalificação do complexo portuário não podem ser feitas sem a sua inserção dentro de um planejamento urbano mais amplo que encare os diversos elementos relacionados à paisagem cultural. Nesse sentido, a situação do porto de Belém como apenas um dos inúmeros elementos do centro histórico é decisivo para se compreender a necessidade de estratégias vinculadas a programas de reabilitação mais amplos.



A construção do atual complexo portuário no entorno do centro histórico de Belém, como já dito anteriormente, foi essencial para a ressignificação dos usos do centro urbano. Ao longo do século XX, o entorno do porto perdeu o seu caráter residencial e, posteriormente industrial, e sofreu um gradativo abandono pela população, contribuindo para o processo de deterioração física da área, caracterizada por feiras e comércio popular. Os imóveis comerciais e de serviços dessa área vem enfrentando o mau estado de conservação, a descaracterização estilística e a subutilização, aprofundadas pelo crescimento do mercado de economia informal (Ravena, 2003).



A ausência de políticas públicas que planejem a conservação e a sustentabilidade da paisagem cultural desse centro urbano soma-se ao problema cada vez mais grave do tráfego e estacionamento de veículos na área e a pressão de grupos imobiliários. Sem um programa específico que busque caminhos para solucionar o caos do trânsito em que Belém está mergulhada, nenhuma política de revitalização do centro tradicional vingará. Em paralelo, há que se resolver as problemáticas acerca do perfil fundiário local, definindo as áreas de ocupação comercial ou de outros interesses privados como áreas prioritárias de desapropriação para o bem comum.



Negar a prática da mercadologização do porto por um fragmento da sociedade, não significa desconsiderar o potencial de retorno econômico e social que sua preservação pode vir a ter para a cidade em âmbito geral. O espaço em que se insere o porto, enquanto entorno do centro histórico de Belém, apresenta um potencial ainda inexplorado em diferentes segmentos de patrimônio: paisagístico, natural, histórico, arquitetônico e arqueológico.



A utilização das áreas portuárias urbanas ao redor do mundo através de novos modelos de uso e apropriação, tais como a construção em seu espaço de marinas, aquários, centros de conferência e mesmo com a atração de filiais de importantes museus, como foi o caso do porto de Bilbao, na Espanha, que instituiu de forma inédita, uma filial do Museu Guggenheim em seu complexo, são alguns dos caminhos que os portos urbanos tradicionais vêm traçando para atrair novos investimentos e renovar os projetos de revitalização do entorno:



“Nos últimos anos, com o fenômeno mundial de revalorização das áreas de frente de água, as alterações nas relações entre o indivíduo e o seu tempo e lazer, o crescimento do turismo cultural e temático, e a tendência à construção de fragmentos qualificados de cidade, destacaram as áreas portuárias por suas potencialidades paisagísticas, lúdicas, logísticas e imobiliárias, bem como pela ‘revalorização mediática do seu capital simbólico’”.[14]



O porto possui um inegável potencial de atração do turismo recreativo, cultural, de compras e de negócios que poderão servir de importantes dinamizadores econômicos e sociais nesses projetos de reabilitação. Contudo, a ampliação de uso desses espaços não pode descartar a ainda presente dinâmica econômica de movimentação portuária, cuja infraestrutura pode ser explorada através do potencial hídrico da região, no que diz respeito a elaboração de um sistema de integração de transportes fluvial e terrestre, de forma a auxiliar no replanejamento da dinâmica do tráfego urbano, extremamente nocivo ao complexo arquitetônico do centro histórico.



Um indicativo do processo de reabilitação do Centro, presente do Plano Diretor do Município de Belém, é o estímulo ao uso institucional e residencial das edificações subutilizadas ou abandonadas de entorno da área portuária, através da promoção de programas habitacionais que incentivem o “repovoamento do Centro” e requalificação dos bens degradados. Ao mesmo tempo, o plano prevê a reabilitação dos espaços públicos destinados às atividades de cultura, lazer e de turismo e o controle da implantação de empreendimentos potencialmente geradores de tráfego e de caráter imobiliário.



A preservação dessa paisagem cultural passa, também, pelo entendimento da mesma como um importante núcleo de patrimônio arqueológico da cidade. Percebemos pelo histórico de sua constituição que o patrimônio portuário não se limita ao seu atual complexo edificado, mas engloba também os vestígios das práticas das sociedades que ali desenvolveram seus modos de vida e de produção muito antes da construção do atual complexo, no início do século XX. Nesse sentido, o porto de Belém também é um rico sítio arqueológico histórico, industrial[15] e protoindustrial[16], com ainda desconhecidas áreas de probabilidade arqueológica. Dessa forma, explorar o patrimônio arqueológico do porto em termos científicos, educacionais, museológicos e turísticos contribui não apenas para a preservação do patrimônio histórico, como para a reconstrução dos elos de identidade e autoestima perdidos entre a sociedade e aquele espaço.



A visão política regional, não apenas do poder público, mas também dos investidores privados, ainda parece ser cega aos resultados positivos desse tipo de intervenção que reproduzem o processo ao atrair público e novos investidores suscitando, assim, novos projetos. O retorno público através da arrecadação de impostos e melhoria da imagem política se une aos impactos sociais que projetos como esse, se planejados para a gestão e o uso democrático, causariam na população de uma cidade como Belém.



Destacar os diferenciais urbanísticos da cidade, e sua atratividade cultural apresenta retornos inegáveis para a urbe. O processo de planejamento, avaliação e controle são fundamentais e devem ser feitos de forma plural e participativa, de forma que seja garantida aos diversos estratos sociais a apropriação e o direito de fruição de espaços patrimonializados que constantemente lhes são negados.



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[1] Especialista em Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia – FIBRA (2011). Vice-presidente da Associação dos Agentes de Patrimônio da Amazônia – ASAPAM. Autora do livro: Porto de Belém: primeiro centenário. Belém: Publicarte, 2009.



[2] O patrimônio portuário é aqui compreendido através da denominação de Nabais (2003), que o considera os “bens móveis e imóveis: desde a utensilagem do porto (…) até os armazéns, as obras hidráulicas (…); desde os estaleiros navais, as vias de comunicação (…) até a balizagem do porto, iluminação das costas, faróis, marcações da barra; desde as alfândegas, e as gares marítimas [ou fluviais], aos fortes de defesa das barras; desde os projetos, planos, desenhos e fotografias até a documentação arquivística, à cartografia e às gravuras; desde os instrumentos de trabalho até as histórias de vida dos trabalhadores das diferentes profissões portuárias”.



[3] Utilizando a expressão de Pierre Nora em sua obra Les Lieux de Mémoire, 1985. Para Pierre Nora, os lugares de memória são, em primeiro lugar lugares em uma tríplice acepção: são lugares materiais onde a memória social se ancora e pode ser apreendida pelos sentidos; são lugares funcionais porque tem ou adquiriram a função de alicerçar memórias coletivas e são lugares simbólicos onde essa memória coletiva – vale dizer, essa identidade - se expressa e se revela. São, portanto, lugares carregados de uma vontade de memória.



[4] Aqui se defende a percepção de Maurice Halbwachs, em La Mémoire Collective, de 1950, de que toda a memória é coletiva, pois que não há como separar um indivíduo do seu contexto familiar, social, de classe, etc.



[5] HAYDEN, Dolores. The power of place: urban landscapes as public history. Cambridgc, Mass.:Thc MIT Prcss, 1997, p.9 apud FERREIRA, 2000: 67-68



[6] RELPH, Edward. Place and placelessness. London:Pion. 1980, p.41 apud FERREIRA, 2000: 68.



[7] A Fortaleza de N. Sra. Das Mercês da Barra, que ficava na baía do Guajará, a algumas centenas de metros do continente, permaneceu como depósito de dinamite, até sofrer uma explosão acidental em meados do século XX.



[8] Seguiram os passos de Boston, Baltimore e São Francisco as cidades de Vancouver (Canadá), Londres e Glasgow (Grã-Bretanha), Barcelona e Bilbao (Espanha), Berlim e Hamburgo (Alemanha), dentre outras.



[9] BELÉM, Câmara Municipal. LEI Nº 8.655, DE 30 DE JULHO DE 2008. Plano Diretor do Município de Belém.



[10] O projeto Ver-o-Rio abarcou uma área do início da Av. Marechal Hermes, onde se localizava a antiga rampa de hidroaviões da PANAIR, muito utilizada durante a 2ª Guerra Mundial para o descarregamento de fardos de látex e demais gêneros de consumo, por sua proximidade ao porto. No espaço, existem um Posto de Informação ao Turista, pequenos quiosques, lago com pedalinhos e um memorial em homenagem ao negro e ao índio.



[11] O atual PDZ, elaborado em 2003, foi aprovado por unanimidade pelo Conselho de Administração Portuária (CAP) em setembro de 2005, entidade composta por 15 representantes de usuários (exportadores e importadores), operadores portuários, governo estadual e federal e Prefeitura de Belém.



[12] O tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico do porto de Belém, publicado no Diário Oficial do Estado do Pará, em 15 de junho de 2000, insere a área portuária propriamente dita, com o complexo arquitetônico de ferro, guindastes e demais equipamentos da época de sua construção, o edifício Sede da CDP, o Reservatório Elevado em estrutura metálica da Praça Magalhães e monumento Pedro Teixeira.



[13] Em 2005, o Ministério Público impetrou ação civil pública contra o desmonte dos galpões. Uma liminar foi concedida pela juíza da 21ª Vara Cível embargando o projeto, mas a medida foi cassada.



[14] Viegas, Luis et al. Contexto, Cenário e Impacto das Operações de Reconversão Urbana em “Frentes de Água”. In Mediterrâneo nº 10/11, Universidade de Lisboa, Jan/Dez.1997, p.11 apud Del Rio, 2001.



[15] A Arqueologia Industrial, surgida do pós-guerra, em meados do século XX, constituiu-se como disciplina que estuda as “transformações técnicas dos materiais [e equipamentos] relativos à industrialização” (Xavier Barral i Altet. “Arqueologia industrial e arqueologia del mundo moderno y contemporâneo”. ANO, p.37. apud Mendes, 1991, p.5).



[16] Embora o período histórico de maior relevo para o estudo da arqueologia industrial se estenda desde o início da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século XVIII, a disciplina não negligencia as suas raízes pré e protoindustriais, anteriores àquele período. (TICCIH - The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage. Carta de Nizhny Tagil sobre o Patrimônio Industrial. Julho 2003, p.3).



















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Manoel Messias Pereira

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