sábado, 17 de março de 2012

O anarquismo entra em cena nas manifestações da cultura política paulistana; apontamentos para discussão sobre classe operária brasileira (1902-1930)











O anarquismo entra em cena nas manifestações da cultura política paulistana: apontamentos para discussão sobre classe operária brasileira (1902-1930)



por Munís Pedro Alves





Sobre o autor[1]



A imigração para o Brasil representou mudanças culturais acentuadas na Primeira República. Esse fluxo migratório saía de seus países em busca de trabalho e melhores condições de vida, porém não era bem isto que encontravam cá. Segundo Petrone (1985), cerca de 30% dessas pessoas eram italianas e a grande maioria dirigia-se para São Paulo, o estado com maior receptividade de imigrantes. Os imigrantes geralmente chegavam atraídos pela expansão da economia cafeeira, pela política publicitária do governo[2] e de incentivo à imigração estrangeira (concessão de passagens, alojamento e outras propagandas).



O desenvolvimento das indústrias possibilitou a absorção de grande parte desses trabalhadores na zona urbana. Muito por conta da constituição da burguesia brasileira que se caracterizava por um elevado entrosamento entre famílias de cafeicultores e de empresários imigrantes, realizado principalmente por meio de casamentos (MENDONÇA, 2000, p.20). Entretanto, as condições de trabalho do operariado na Primeira República eram bastante desfavoráveis. A maioria chegava trabalhar quinze horas por dia, de segunda a sábado, às vezes, forçados a trabalharem também no domingo. E quando demitidos não tinham direito a indenização, aviso prévio e outros direitos trabalhistas assegurados atualmente.



A falta de saúde e higiene, o assédio (sexual e moral) e o ambiente hostil pareciam não preocupar os donos das indústrias. A ocasião de doenças, de acidentes de trabalho e de violências, sobretudo sofrida pelas crianças operárias, era comum nos locais de serviço.



"Os trabalhadores menores, de 7 a 14 anos, eram as principais vítimas dos mestres e contra-mestres, que os castigavam com espancamentos, sopapos, pontapés e puxões de orelha (&) Os mestres e contra-mestres também seduziam mulheres operárias em troca de máquinas mais produtivas ou de melhores salários. Caso não cedessem a essas propostas, elas eram perseguidas com multa, descontos ou máquinas enguiçadas" (RIBEIRO, 1989, p. 13).



Os inúmeros acidentes, os baixos salários, as longas jornadas e o excesso de autoritarismo provocavam protestos e reivindicações dos operários[3]. Dentre as formas de protestos o anarquismo ganhou voz na estratégia de luta contra a opressão capitalista, em favor de uma sociedade pautada pela cooperação e pela solidariedade entre as pessoas. Vários meios foram usados para divulgarem estes ideais. Contudo, nos detivemos no modo de expressão que englobava um conjunto cultural mais amplo: o teatro operário.



Cenas que libertam



O teatro operário foi um elemento fortemente presente na cultura dos trabalhadores brasileiros a partir do final do século XIX. Nesse sentido, Collaço (2008) nos conta sobre o surgimento do teatro amador criado por trabalhadores em 1987 no Rio Grande do Sul. Segundo a autora, este teatro realizado na cidade de Rio Grande (RS) tinha caráter moralizador e pedagógico e possuía um discurso ideológico de apelo às massas, apresentando tendências anarquistas e socialistas em seus primórdios, mas transformando-se sob um viés conservador ao passar dos anos. Tendo em vista que este teatro organizado inicialmente por trabalhadores do Rio Grande de Sul perdurou até a década de 50, podemos perceber como o período de divulgação de ideias e conscientização dos trabalhadores se estendeu ao longo do século XX.



De acordo com Gabriel Passetti (2009), o teatro operário em São Paulo era realizado geralmente no Bairro do Brás, onde morava boa parte dos imigrantes e situava uma parcela das pequenas indústrias de imigrantes italianos.



É imprescindível explicitarmos a importante contribuição que Maria Thereza Vargas deu ao assunto em Teatro Operário na cidade de São Paulo, de 1980. Por isso, pretendemos como reconhecimento da obra referencial utilizá-la como eixo norteador deste trabalho.



Vargas remonta fragmentos de jornais anarquistas, notícias, anúncios, balancetes financeiros e trechos das peças divulgados para evidenciar o surgimento de um teatro operário concomitantemente à publicação das primeiras edições dos jornais libertários. Contudo, ela supõe que os teatros operários começaram pouco após a chegada dos imigrantes europeus, principalmente italianos, ao Brasil. E que, portanto, antes da atividade gráfica, já havia o encontro teatral operário mesmo que silencioso até a criação da imprensa operária.



Rodrigues (1972) data o início do Teatro Operário em 1903[4] salientando que era composto por modestos trabalhadores, grevistas, anarquistas e perseguidos políticos. Alguns deles passavam de atores amadores à condição de artistas profissionais mais tardiamente. Além disso, o autor explica que o sucesso de algumas peças era tão grande que foram repetidas por dezenas de vezes.



O teatro funcionava como um meio difusor de ideias libertárias que destacavam simbolicamente em seus personagens "os que desejavam segurar a riqueza da nação e o poder nas mãos de poucos em prejuízo de muitos, e dos que desejavam transformar a nação em uma sociedade de homens livres e iguais em deveres e direitos" (RODRIGUES, 1972, p.80). Aqui, percebemos a construção das identidades políticas sendo formuladas a partir dos valores e propósitos que os diferenciavam-nos de outra(s) classe(s). Desta maneira, o teatro é entendido como instrumento para fomentar a formação de consciência da classe trabalhadora, onde a solidariedade se configurava como um dos princípios morais centrais desse "fazer-se".



Longe da proposta de esmiuçar longamente e promover um debate acirrado sobre os preceitos ideológicos que envolvem o objeto de estudo, ou até mesmo travar uma discussão filosófica sobre o que é ou deixa de ser anarquismo, o presente exercício intelectual se propõe a contribuir minimamente às interpretações historiográficas sobre o tema "teatro operário". Relacionando-o a uma estratégia de luta política "anarquista" que se desdobra em multiplicidades culturais.



O teatro é mais do que teatro: a festa operária



O teatro era extensão de organismos de proteção e de ajuda mútuas prestadas à sociedade recém-chegada ao Brasil. O teatro, por sua vez, possuía intenções didáticas de preparação destes imigrantes às condições de vida do operariado brasileiro.



"A origem desta concepção didática doutrinária do teatro está ligada certamente a composição étnica da classe operaria. São os italianos, como parcela numericamente mais significativa da composição da classe nesse início de industrialização, que assumem e impõem continuidade à atividade teatral. O teatro é aqui o surgimento de uma experiência anterior, em solo italiano, largamente desenvolvido durante as lutas sociais do período de unificação. De forma muito particular, a divulgação das teorias sociais libertárias se processa idealmente através da arte" (VARGAS, 1980, p.18-19).



A capacidade de instrução para as massas que o teatro (anarquista) possui, explicita o veículo da arte enquanto projetista de uma sociedade ideal, que coadunaria harmonia coletiva e liberdade individual. Surgindo como expressão cotidiana capaz de transformação social através da prática política.



O jornal A Plebe de 1903, nos conta aspectos interessantes sobre a realização do teatro. Notamos a presença de crianças e mulheres na "plateia", o que denota o caráter social de participação de todos os membros da família operária e não somente do homem.



"É comum que a programação de uma festa se modifique durante o espetáculo, incluindo um ou outro número musical e poético por solicitação da platéia. Qualquer pessoa pode ter acesso ao palco e contribuir com o número que desejar. Da mesma forma que a propaganda doutrinária se dirige à família operária, o teatro é feito e freqüentado por todos os membros da família operária" (VARGAS, 1980, p.37-38).



As festas operárias aconteciam no sábado, dia em que os trabalhadores dispunham do único tempo livre na semana, tanto para o descanso, quanto para o lazer. Nesse sentido devemos ter cuidado com as interpretações reducionistas a respeito dos usos das festas operárias. Entendemos que após uma semana de trabalho árduo em longas jornadas de horário, há de se convir que os operários não comparecessem nestes eventos apenas para beberem uma dose de fundamentos anarquistas.



A apresentação do teatro era apenas uma das atividades desenvolvidas durante a "Festa Operária", que começava na noite de sábado e ia até a madrugada de domingo; com incursões de rifas, cantos, conferências, outras atividades artísticas e, no encerramento, o baile, que podia durar várias horas. Já sem a presença das crianças, este atrativo proporcionava um momento de sociabilidade adulta entre os trabalhadores; não era rara a formação de casais que se conheciam durante o baile. Entretanto, eram comuns as discussões entre organizadores e grupos teatrais "mais engajados politicamente" que não viam com bons olhos as realizações dos bailes. Eles argumentavam que os bailes eram um desperdício de energia, que deveria ser empregada em ações políticas e ideológicas. Nota-se aí, a luta de classes presente nos discursos dos dirigentes operários[5] (vanguarda) contra a cultura dominante. Acentuados pela tensão resistência/assimilação, em prol da invenção de uma sociedade autogovernada, os parâmetros culturais se confundiam com os da cultura dominante, pelo menos no entendimento de alguns organizadores. Existe, neste caso, a contradição entre o discurso da direção da classe e o próprio discurso da classe; aspectos que necessitam maiores cuidados e pesquisas mais aprofundadas (cf. HARDMAN, 2002, p.55).



À diante, ao verificarmos os lugares onde eram realizadas as apresentações, notamos que os locais alugados geralmente eram utilizados para conferências e números musicais, funcionando mais precisamente como auditórios (para ouvintes) do que propriamente para as encenações de peças teatrais (para espectadores).



"Antes de mais nada, interessa a esse teatro a clareza na transmissão de uma ideia já formulada no discurso verbal. E é sobre a palavra que se apoia o espetáculo, ignorando o poder de sedução da imagem. Operando sobre a consciência do espectador, o teatro deve comover através da identificação de problemas" (VARGAS, 1980, p. 25).



Neste ponto, enxergamos uma evidência do viés sociável da festa. Acreditamos que os locais onde eram realizados os eventos serviam não somente à preocupação de funcionar como ambiente propício para transmissão das ideias libertárias, (pois não havia cadeiras fixas e o público ficava de pé). Mais também, a escolha de salões abertos procurava atender as características para facilitar o trânsito das pessoas. Isso era extremamente necessário para a realização do baile.



A averiguação do formato do baile, o pensamento dos organizadores do evento e a participação massiva da sociedade operária são pontos interessantes que podem proporcionar maiores reflexões. Por que o baile era a última atração da festa? Porque era menos importante para os ideólogos do evento ou uma estratégia para segurarem os trabalhadores durante rifas, conferências políticas e representações teatrais? O que nos parece é que o baile não era a "cereja do bolo" (pelo menos não no pensamento das lideranças e organizadores políticos), mas a "isca" para segurar o "peixe". Será que a ocasião seria tão atrativa sem o desenvolvimento do mesmo?



A favor de uma interpretação que não se encerra na propaganda política anarquista ganha mais força pensar que estes eventos aconteciam em bairros principalmente industriais, regiões do município onde as realizações de eventos culturais alheios à temática política não eram comumente desenvolvidos[6]. Por isso, é particularmente imprescindível entendermos a busca de espaços de lazer que havia pelos trabalhadores, uma vez que estes eram segregados pela classe dominante que os viam "em condições duplamente perigosas, assalariados e estrangeiros" (HARDMAN, 2002, p.52). Neste sentido, a consciência de classe, mesmo dos trabalhadores não vinculados aos sindicatos e outras associações políticas, processa eclodir antes da participação nestes espaços por simples oposição aos valores que não são os seus; causada pela segregação cultural classista.



Outro ponto colocado por Vargas é a destinação dos fundos monetários gerados pelas festas. "Com frequência maior destina-se a renda aos periódicos libertários. Mas há também benefícios em nome de companheiros doentes, presos ou exilados" (1980, p.33). A renda do sábado festivo era enviada também para a construção de escolas dos filhos de operários (conhecidas como Escolas Modernas), além de sustentarem ajuda a grupos internacionais anarquistas.



Todavia, verificando com mais cautela os documentos que mostram a renda obtida na festa, percebemos que o total era de valor ínfimo, incapaz de servir para uma ajuda econômica significativa às famílias, tampouco financiar grupos de anarquistas internacionais. Acreditamos que estes valores arrecadados eram doados simbolicamente em gesto de solidariedade. O que não enfraquece a luta política, pelo contrário, o valor moral e o gesto solidário sobrepõem o poder de compra do dinheiro e torna o movimento mais próximo dos ideais eticamente preconizados.



A escassa quantia de documentação disponível se reflete nas raras discussões historiográficas sobre o tema. É aqui entendido como destruição de fontes, sobretudo, devido à repressão política executada pela polícia a estes grupos, fato explicitado pelas intervenções noticiadas em jornais da época. Na intenção de controlar insurreições e possíveis greves incentivadas por lideranças e organizações ideologicamente anarquistas, o policiamento praticava incursões "preventivas" nesses espaços culturais[7]. Neste sentido, a repressão dos órgãos estatais, com o uso da violência legitimamente reconhecido na ordem capitalista, despertava um "espírito de revolta" contra os representantes das imposições e congregava a necessidade de união da comunidade sofredora das injustiças sociais comuns.



O governo aprimora seus métodos de combate à oposição da classe trabalhadora com o passar do tempo. Num período após a instauração da república, Getúlio Vargas assume o poder presidencial em 1930 e cria órgãos que vão aos poucos silenciando o teatro "anarquista". Gabriel Passeti (2009) conta o papel do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que procurava controlar a produção cultural do país, impedindo a realização de peças teatrais e conferências de cunho anarquistas, socialistas e anticapitalistas no Brasil. Oferecendo mais tarde um modelo de cultura adequado ao governo nacional que começava a vigorar: o cinema burguês americano.



Operários: para além de uma concepção encerrada de anarquismo.



É preciso assinalar as dissonâncias presentes nas obras historiográficas consultadas sobre as atividades artísticas deste teatro amador. Talvez por escolha dos autores em explicitar os pressupostos anarquistas envolvidos no evento não houve tentativa, ou prevaleceu à indiferença, em pesquisar as transformações operadas e as múltiplas significações e as apropriações que atravessaram os teatros operários ao longo do processo histórico. De maneira que, muitos trabalhos se interessaram a mostrar o teatro operário somente como chamarizes de uma imprensa anarquista vinculado a determinadas "lideranças" da classe[8].



Uma das propostas iniciais que conduziram este trabalho era a de apresentar um teatro fundamentalmente anarquista, contudo após a averiguação das fontes "primárias" (verificadas também nos levantamentos historiográficos), a visão unilateral se tornou incômoda e problemática. Havia muitos embates internos e externos referentes aos grupos operários, não existindo no objeto de estudo uma vertente unitária anarquista que sobressaltasse aos olhos. Estes confrontos ideológicos estão internamente presentes no pensamento libertário (bastante plural); sob a congregação de uma série de grupos e vertentes, não raras vezes, discordantes entre si. Além disso, se encontra relevante dificuldade no tratamento e apropriação que a historiografia faz do termo "anarquismo", não caracterizando precisamente outras vertentes existentes neste período. Por exemplo, verificando as diferenças entre o anarquismo comunista, o anarquismo sindicalista ou o sindicalismo revolucionário.



Como exemplo, em determinadas épocas (principalmente no período inicial da primeira república brasileira), o sindicato funcionava como órgão que desempenhava um papel importantíssimo na organização de luta dos trabalhadores e fomento de ideias revolucionárias diretamente vinculadas ao(s) movimento(s) anarquista(s). Todavia, depois do "Golpe de Estado" em 1930, os sindicatos são "cooptados" pelos tentáculos de controle e paternalismo autoritário da ditadura varguista. A partir deste momento, vemos uma rediscussão dentro do movimento operário sobre a transformação eclodida nos sindicatos que ganharam roupagens restritivas ou conservadoras[9]. Porém, se pudermos postular de modo simplista sobre o principal ponto de cisão que os anarquistas elegem ao criticar os sindicalistas-revolucionários, é o caráter de melhoramento no sistema vigente que estes almejam, ou reformismo, contrariamente ao pensamento radical do anarquismo que pretende uma transformação completa no sistema[10] (PINHEIRO, 1979, p.129).



Não podemos dizer diante de tantas incertezas, redefinições e transformações dentro do movimento operário que a atividade cultural tinha cunho integralmente anarquista. Seria muito vulgar uma adjetivação deste nível e serviríamos somente a um ídolo ideológico que recorrentemente é utilizado nas lutas de classes, mas pouco explica. Mesmo que a apresentação teatral tivesse moldes textuais essencialmente anarquistas, esta compunha apenas parte de um evento ou cerimônia sócio-cultural que envolvia atividades diferentes tão ou mais importantes para aquela comunidade quanto o teatro anarquista. Neste sentido, é exatamente para a dinâmica humana da festa operária que gostaríamos de entender com mais cuidado, uma vez que a apropriação destas pessoas parece não se encaixar, tão somente, nos quadros engendrados pela historiografia consultada.



Considerações finais



Que o teatro operário anarquista tinha o objetivo de conscientizar o operariado a respeito dos problemas vivenciados com a exploração da mão-de-obra trabalhadora pelo capitalismo e elidir através desta problematização os ideais libertários, isto está provisoriamente fora de contestação. Entretanto, a forma que a sociedade envolvida se apropriava destes eventos culturais é um ponto para repensarmos. Ainda além, dizer que o teatro operário anarquista desenvolveu uma consciência de classe é um tanto quanto forçoso. É no mínimo arrogante desconsiderar as experiências de vida e valores culturais múltiplos que permeavam suas realidades, os quais serviriam para travar um processo dialético para além da assimilação de quaisquer imposições, sejam advindas dos patrões ou dos líderes da resistência[11]. Além disso, já apontamos ao longo do trabalho outros aspectos importantes vivenciados por esses trabalhadores que compuseram possibilidades da formação da consciência de classe, aliás, antes e posteriores às participações nos espetáculos teatrais.



Fugindo da dicotomia diversão ou ação política, Lafargue (2003), inverte a lógica de luta dos movimentos sociais trabalhistas e defende claramente a descontração e o extravasamento no lazer operário, como uma forma de resistência a imputação brutal que a longa jornada de horas na labuta condicionava os trabalhadores. Na defesa do autor, o trabalho (e a ideologia trabalhista atuando na esfera de luta política da esquerda) representa uma contradição à libertação, ou seja, é o completo esfacelamento do trabalhador proletário.



"Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do individuo e de sua prole até o esgotamento" (LAFARGUE, 2003, p.19).



É inegável que a realização e a perduração relativa deste teatro operário (elemento constitutivo da festa operária) sequer tivessem sido concretizadas sem a ajuda, a divulgação, a organização e o incentivo da imprensa anarquista e dos grupos ideologicamente envolvidos sejam eles dirigentes ou não. Até porque os ingressos eram vendidos e/ou distribuídos pelos jornais e folhetins anarquistas e a renda dos eventos também era utilizada para subsidiar os meios de comunicações dos próprios trabalhadores e organizações operárias. Contudo, dizer que as manifestações artísticas e culturais se encerravam na proposta ideológica política dos organizadores é desconsiderar a complexidade social de apropriação daquela comunidade participativa, de certa maneira, menosprezar a autonomia dos atores sociais que circulavam nesses espaços.



Para finalizar, é relevante reiterar que os aspectos relacionados ao lazer, ao entretenimento, à diversão e, até mesmo, à fruição, funcionavam como elementos subjacentes e ferramentas úteis na luta contra a exploração de um modelo econômico opressor, bem como apontou Lafargue. Não precisamos nos esconder em roupas de super-heróis sob uma ética disciplinadora e robótica para lutarmos por aquilo que acreditamos ser essencial para sociedade e para nós mesmos. Em vista disto, não enxergamos problema algum em desconstruir determinadas explicações que identificam o(s) movimento(s) anarquista(s) como uma continuidade intocável, progressiva e harmônica. Pelo contrário, como o próprio nome diz, "o movimento" é algo que pode se direcionar em várias posições, sem necessariamente, perder o que o torna mais autêntico e sedutor para os anarquistas. Ou seja, a criação e a imprevisibilidade. Pois como poetizou Edson Passetti (2007, p. 05): "É preciso anarquizar os anarquismos. Urgente!" Pois, existem muitas anarquias pululando dentro do anarquismo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:



AVELINO, Nildo. Anarquistas: ética e antologia de existências. Rio de Janeiro: Achiamé, 2005.



COLLAÇO, Vera. "Intencionalidades didáticas do teatro para o trabalhador". Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008, disponível em www.anpuhsp.org.br.pdf



GONÇALVES, Cláudia Tolentino. Homem regenerado e Brasil reformado: escritos de Edgar Leuenroth no período anarquista 'O libertário' (1960-1964). Apresentação de Monografia da Universidade Federal de Uberlândia pelo Curso de Graduação em História. Uberlândia, 2011.



HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria, nem patrão! memória operária, cultura e literatura no Brasil/ Francisco Foot Hardman. - 3. ed.rev.e ampli. - São Paulo: Editora UNESP, 2002.



LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. São Paulo: Editora Claridade, 2003.



MENDONÇA, Sônia. A industrialização brasileira. São Paulo. Moderna, 2000.



PASSETTI, Edson. Anarquismo urgente. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.



PASSETTI, Gabriel. Cultura no Brás no Início do Século: Teatro anarquista e cinema burguês. Disponível em www.klepsidra.net/teatroanarquista. Acessado em 17 de set., 2009.



PETRONE, M. T. Schores. Imigração. In: FAUSTO, Boris (org.). História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difel, 1985.



PINHEIRO, Paulo Sérgio & HALL, Michael M. A Classe Operária no Brasil. São Paulo: Alfa Omega, 1979.



RIBEIRO, Maria Alice R. Fábrica e cidade. Revista Trabalhadores. Campinas, Fundo de Assistência à Cultura, 1989.



RODRIGUES, Edgar. Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemerte, 1972.



SEIXAS, Jacy Alves de. Acerca do militante anarquista: sensibilidade, cultura e ética política. Encuentro Cultura y Practica del Anarquismo: Colegio del México, 23 y 24 de Marzo, 2011.



SILVA, Thiago Lemos. Revolucionário ou reformista? Prós e contras do sindicato segundo Errico Malatesta. In: Revista Urutaguá. Maringá: Departamento de Ciências Sociais Universidade Estadual de Maringá, n° 11, dez/mar, 2007.



SILVEIRA, Miroel. A contribuição italiana ao teatro brasileiro: 1895-1964. São Paulo, Quíron; Brasília, INL: 1976.



THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Volume II: a maldição de Adão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.



VARGAS, Maria Thereza. Teatro Operário na cidade de São Paulo. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento de Informações e Documentação Artísticas, Centro de Pesquisa de Arte Brasileira, 1980.





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[1] Acadêmico do nono período em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: pedro.munhoz@hotmail.com



[2] Entre 1886 e 1895 cerca de 220 mil imigrantes se fixaram no estado de São Paulo sob a coordenação da Sociedade Promotora da Imigração (SPI) que, além de pagar a passagem às companhias de navegação, prometia subsidiar a locomoção gratuita do porto até a localidade escolhida como destino, fornecer sementes, alimentos durante seis meses e a propriedades de terra (AVELINO, 2005, p.53).



[3] As reivindicações principais giravam em torno de melhorias nas condições de trabalho dentro das fábricas e reconhecimento de organizações autônomas desses trabalhadores (GONÇALVES, 2011).



[4] Tomando por base uma pesquisa na área de artes e comunicação, Silveira (1976) vai datar o surgimento das primeiras "sociedades filo-dramáticas idealistas" em 1895, já com apresentações de peças retiradas de matrizes italianas por um viés notoriamente político. Em 1897, um jornal em italiano noticia a apresentação de Paolo Ferrari, encenando Bruno "il dilatore". Podemos perceber, portanto, que não existe um consenso sobre o surgimento do teatro.



[5] Parece estranho falar em classe dirigente ou vanguarda dentro de uma organização anarquista, na verdade, essas pessoas que organizavam os eventos tinham um entendimento marcadamente marxista de conscientização de classe. Muito por conta disso, alguns autores preferem não rotular (de anarquistas, anarco-sindicalistas, socialistas, etc. ) a classe trabalhadora ou o movimento operário. Seixas (2011), por exemplo, opta por fugir dessas identidades ideológicas apressadas e pouco precisas, descrevendo frações do movimento trabalhista, de acordo com sua estratégia de luta escolhida, como exemplo, a ação-direta.



[6] Um desses locais era o Cassino Penteado, próximo a Fabrica Penteado, situado no bairro do Brás.



[7] Tanto o livro de Vargas (1980), quanto o de Hardman (2002) trazem a tona as evidências destas ocorrências.



[8] Acreditamos que esse tipo de análise corre sério risco de perder de vista à pluralidade de dimensões abarcada pela dinâmica humana, o que de certa maneira vai em direção contrária a autonomia sem liderança muito cara ao anarquismo.



[9] O processo de oficialização dos sindicatos desanimou grande parte dos anarquistas que acreditavam nos propósitos do sindicato enquanto organização promotora da revolução: "o sindicato operário é uma agremiação incipiente, de funções muito restritivas, e a luta, e bem assim, as aspirações sindicais estão longe de preencher as necessidades requeridas pelas reivindicações radicais e decisivas do proletariado". (A Plebe n°11, 28/01/1933, citado por AVELINO, 2004, p. 69).



[10] Gostaríamos de sugerir também uma leitura esclarecedora em torno da dicotomia revolução-reforma proposta pelo sindicato, sobretudo, porque a pesquisa contempla a teoria e prática indissociáveis de Errico Malatesta, um anarquista de fronteira nesta problemática (SILVA, 2007).



[11] Ao explicar o processo histórico dialético que se configurou a formação da consciência de classe operária, Thompson (1987) advoga contra as análises automáticas que estabelecem o surgimento do proletariado a partir da imposição capitalista nascida da revolução industrial. O autor explica que existiam outros valores (dos costumes, dos valores morais, da religião etc.) que foram mais importantes nesta constituição do que o processo de transformação econômico e a vinculação de domínio exercida pelos burgueses.





















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