segunda-feira, 7 de maio de 2012

"O leitor de Marx " de José Paulo Netto



História - Livros





Milhares de marxistas e antimarxistas se perderam nos meandros da argumentação de Marx, que muitas vezes sobreviveu só em rascunhos.



por Celso Barros

em História, Livros



"O leitor de Marx", de José Paulo Netto (org.)

1.

Da primeira vez que vi na livraria um livro com o título “O Leitor de Marx”, achei que se tratava da história da busca quixotesca pelo “leitor de Marx”, a criatura mítica que realmente leu o Marx antes de dar uma opinião taxativa sobre ele. Mas não. Descobri que se tratava de uma coletânea de textos do Marx, em que o leitor do título traduz o reader, comum em inglês, um livro que reúne textos de um autor (ou sobre um mesmo tema) que se pretende especialmente representativos. O propósito de um reader normalmente se reflete na abordagem do organizador: para ficar em exemplos do Marx, o do Elster é organizado por temas, o que é ótimo para o leitor que quer ter uma ideia geral do que dizia o Marx; no livro menorzinho do Giannotti, há trechos selecionados com o objetivo explícito de argumentar que a obra do Marx é muito mais aberta do que se imagina (isto é, ele era muito menos um fundador de sistemas do que se imagina). Há sempre o risco de se encontrar coletâneas do Marx feitas com o óbvio propósito de justificar o regime soviético.



O Leitor de José Paulo Netto é organizado cronologicamente, e me parece especialmente adequado para acompanhar um curso sobre Marx. Se um leitor (sem aspas) tentar encará-lo do início ao fim, começando com as brigas do Marx contra os jovens hegelianos, provavelmente vai perder o interesse logo. Isso apesar do trabalho do organizador ser caprichado: se você escolher incluir os textos que ele incluiu, esses são os trechos que valia a pena mesmo destacar. Mas a briga é ladeira acima. Digo porque sei: o meu curso sobre Marx na faculdade começava com A Questão Judaica, tal como o Leitor, e a leitura dava a sensação de pegar uma discussão no meio.



Por outro lado, um bom professor pode dar um excelente curso usando o Leitor de José Paulo Netto. O organizador tem várias das qualidades necessárias para o bom desempenho da tarefa em que se lançou: em primeiro lugar, transparece no trabalho que Netto gosta de estudar Marx. O Elster, por exemplo, escreveu uma introdução ao Marx que tem várias qualidades, mas na qual transparece que o autor já estava meio de saída daquela problemática. Netto está firmemente estabelecido na tradição marxista, o que, se torna seu trabalho menos inovador, o ajuda a cumprir melhor o propósito de mostrar o Marx ao leitor. Não há muita heterodoxia na seleção de Netto (que, a crer na Introdução ao Leitor, não deve mesmo ser muito heterodoxo), e talvez outros dois pequenos textos devessem ter sido incluídos (as notas sobre “Estatismo e Comunismo” do Bakunin e o “Fragmento sobre as Máquinas” dos Grundrisse); mas, no geral, é isso aí mesmo.



Agora, no fim das contas, o que decide se um livro desses afunda ou decola é a qualidade do autor “lido”. Se a Cosac & Naify lançasse um “O Leitor de Pondé” editado por Aristóteles, talhado no monolito de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, com uma introdução do Yoda explicando a cura do câncer, uma nota de rodapé que pudesse ser recortada e usada como vale-sexo com a Megan Fox e/ou com o Ryan Gosling, e uma capa de seja lá quem desenhou o litoral carioca e a bandeira do Mengão (certamente foi o mesmo cara), ainda assim o livro seria uma merda.



Portanto, a melhor maneira de discutir o Leitor é investigar pra que serve ler o Marx. Vamos lá então, mantendo a esquerda até o Museu Britânico e depois vendo onde chegamos.



2.

O livro começa com o personagem principal meio frustrado por ter nascido na Alemanha do começo do século XIX. É um revolucionário, o jovem Marx, um revolucionário burguês da tradição francesa. Mas não vai haver revolução como a francesa na Alemanha. Na Alemanha, a burguesia conseguiu uma acomodação de longo prazo com a nobreza e seu Estado, e com ela não se pode contar para fazer revolução nenhuma. Em consequência, o capitalismo vai se desenvolver na Alemanha, ainda por muito tempo, sem trazer consigo a sociedade aberta, sem a nação moderna, sem democracia, com censura — ou, como diz o Marx: com tudo de ruim que tem o capitalismo, sem seu lado bom. Durante muitas décadas, os livros do Marx sensibilizariam especialmente gente que nasceu em países com o mesmo problema.



Por outro lado, a Alemanha tinha os melhores filósofos de todos os tempos que nunca usaram sainha de grego (em público, ao menos). Em uma dessas sequências que só acontecem muito raramente, os alemães produziram Kant e Hegel. Se você não se interessa por filosofia, isso pode parecer um consolo meio chulé por não ter direito ao voto, mas, se você acha que filosofia não tem impacto no mundo concreto, leia isso aqui até o final.



Hegel produziu uma filosofia da história (entre dúzias de outras coisas) que descrevia os diferentes momentos da história (tal como conhecida por um europeu estudioso de sua época) como estágios (para, respira) no progresso (para, respira) da tomada de autoconsciência (para, respira) do tal do Geist, que você pode traduzir como “mente” ou como “espírito”, e se divertir bastante discutindo as consequências de sua escolha. Você também pode interpretar a narrativa do Hegel como o processo de aceitação da razão (e, portanto, da liberdade? divirta-se também discutindo isso) como critério fundamental pelas sociedades humanas, ou como um profundo processo metafísico pelo qual o espírito universal (ninguém menos do que ele) se torna autoconsciente através da história. Este resenhista nunca leu os textos mais hardcore do Hegel, a Fenomenologia do Geist (sei lá o que é isso) e a Lógica; peçam mais explicações para quem entende disso.



O jeito do Hegel contar essa história era brilhante, o que explica por que muita gente, inclusive Marx, ficou fascinada, mas o final da história do velho Heg-Man era profundamente decepcionante: todas aquelas reviravoltas históricas espetaculares e, no final, o auge do processo todo (porque o processo claramente tem uma direção, um objetivo final) é, conforme o intérprete, mais ou menos igual ou não muito diferente do Estado prussiano da época do Hegel. Já foi dito que isso talvez tenha sido o Hegel com medo da censura. Sei lá eu se foi, mas, baseado no que efetivamente foi publicado, cabe a pergunta: É isso mesmo, espírito absoluto? É isso o melhor que você sabe fazer?



Os seguidores jovens do Hegel, não muito originalmente conhecidos como “jovens hegelianos”, se propuseram a tarefa de restaurar o alcance das ideias do autor para além desse anti-clímax. Uma parte fundamental do processo foi a crítica da religião cristã (a oficial do Estado prussiano), desenvolvendo uma ideia que, se bem me lembro de ter lido em algum lugar, estava no Hegel: a de que os deuses são projeções de qualidades humanas (ou são projeções do que há de divino no ser humano? divirta-se com isso). Marx também se entusiasma com essa discussão, mas é aqui que ele começa a demonstrar sua originalidade diante da turma toda.



No primeiro capítulo do Leitor, Marx se depara com os jovens hegelianos fazendo a crítica da religião, e dobra a aposta: Bauer, meu filho, diz o Marx, fazer a crítica da religião é certo, tranquilo, beleza; mas não adianta muito se você não criticar o que, no mundo, causa a alienação humana. A religião é o coração de um mundo sem coração, o espírito de um mundo sem espírito, e a não ser que a vida humana adquira o caráter criativo e livre que os humanos idealizam quando criam os deuses, não vai adiantar grande coisa deixar todo mundo esclarecido sobre teologia. Essa discussão sobre emancipação política dos judeus, continua ele, também é legal, bacana, sou a favor, mas a emancipação política tampouco resolve. A liberdade que antes havia sido projetada nos deuses não pode, agora, ser projetada no Estado.



É possível perceber (acho eu) em Marx algo do ideal romântico da vida dedicada a uma obra, um trabalho que também é uma realização individual, um ato de oferta e abertura ao mundo que não só não violenta a vida interior como, na verdade, a forma. Mas também é óbvio que Marx quer universalizar isso: ele não vai ficar satisfeito com meia dúzia de artistas refletindo sobre o universo, recitando poesia concreta com cara de tédio, e fingindo que vai terminar Chatô. Nessa primeira fase do Marx, é difícil (pra mim) não ter a impressão de que o ideal político (que logo se chamará comunismo) é uma generalização do ideal romântico da obra para o conjunto inteiro do trabalho social. O comunismo, sim, é um final à altura da narrativa do Hegel.



Mas, e aí, como é que faz uma narrativa mais ou menos como a do Hegel, sem o espírito absoluto, ao mesmo tempo em que se transforma a Alemanha em um país democrático sem ajuda da burguesia?



A-há! Fu-deu! O proletaria-do apa-receu! O operariado urbano era um enorme contingente populacional de gente cujo trabalho era a imagem invertida do ideal romântico: uma completa ausência de controle sobre o processo e sobre o produto do trabalho, que disciplinava e automatizava as horas (cada vez mais horas, a Revolução Industrial não foi bolinho) do dia do trabalhador. E o operariado urbano era real: a burguesia o produzia à medida em que industrializava o mundo, e ele, aos poucos, se organizava e se produzia como agente político. Hoje parece meio esquisito o estudante do PCO esperando uma revolta operária. No século XIX elas aconteceram com certa frequência (e no XX tampouco foram poucas), muitas vezes quando das primeiras crises periódicas do capitalismo industrial, que, como vocês podem imaginar, só se mostraram obviamente cíclicas depois que várias aconteceram; nas primeiras, não era um despropósito supor que o capitalismo, que acabara de nascer, não ia durar muito.



Já temos, portanto, um ator. Falta um roteiro. Vamos lá, todo mundo criando o materialismo histórico.



3.

Há quem diga que o texto que marca a ruptura entre o “jovem Marx” e o “velho Marx” é A Ideologia Alemã, escrito com o Engels (que entrou em cena alguns anos antes, e apresentou Marx à Economia Política). A ruptura seria marcada pelo fato de que, nessa obra (que permaneceu inédita até o século XX), em meio à polêmica com os hegelianos de sempre, M&E formulariam a primeira versão de sua filosofia da história. Há alguma verdade nisso.



Na produção, que é um fato ao mesmo tempo social e natural, o homem, para produzir materialmente as condições de sua vida, desenvolve os instrumentos de trabalho, as técnicas, etc. A cada estágio de desenvolvimento desse arsenal produtivo, corresponde uma forma específica de cooperação entre os homens, incluída aí, a partir de certo ponto do desenvolvimento, sua divisão em classes (como é essa passagem? quem estava certo, o Clastres ou o Engels? divirtam-se com isso). Eventualmente, um tipo de cooperação pode deixar de favorecer o desenvolvimento contínuo do progresso da produção, caso em que uma nova forma de cooperação, com novas instituições, etc., emerge. A cada um desses estágios correspondem formas ideológicas específicas – em cada época histórica, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, que, no momento de sua ascensão, consegue, efetivamente, apresentar seu interesse específico como interesse universal: nesses momentos, seu interesse realmente coincide com vários interesses das classes dominadas (pensem no proletariado e a igualdade perante a lei, que foi, sem dúvida, um progresso).



O materialismo histórico é mais ou menos isso mesmo, mas se você quiser uma síntese muito melhor, muitíssimo mais bem escrita, e que constitui um dos trechos mais densos e influentes de todos os tempos, pule uns textos do Leitor e vá direto ao Prefácio a Para a Crítica da Economia Política, cujo melhor comentário é o livro do G.A. Cohen. O interesse da Ideologia Alemã talvez esteja em ver os argumentos do Prefácio ainda fortemente marcados pela linguagem filosófica, o que mostra a origem do que, no Prefácio, aparece de maneira mais analítica. Em resumo (para uma exposição honesta, leiam o Cohen): as forças produtivas (machado, arado, nanotecnologia) tendem a se desenvolver, determinam o caráter das relações de produção (trabalho feudal, salário/propriedade privada, etc.), isso tudo junto determina a superestrutura político-ideológica da sociedade (Impérios “hidráulicos”da antiguidade, Estado Moderno, Aristóteles justificando a escravidão, Economia Política defendendo o Estado mínimo, etc.); com o desenvolvimento das forças produtivas, uma hora elas ficam grandes demais para suas relações de produção, e aí as relações de produção vão para o saco, juntamente com toda a superestrutura político-ideológica, e novas relações de produção e superestruturas ideológicas são criadas. Repita o processo até nascer a sociedade comunista.



Vale a pena aceitar essa versão sobre a história? Se você quiser aplicar dogmaticamente, é claro que não: a história é uma confusão miserável, e é sempre difícil estabelecer o que está causando o quê. Mas, se você quiser pegar o esquema e usar como caixa de ferramentas a ser utilizada conforme o contexto em análise (menos como modelo e mais como macete para começar a apreender os dados), eu, pessoalmente, acho um esquema tão bom quanto um esquema pode ser. E acho que, se você der uma olhada nas análises históricas concretas do Marx — a mais famosa das quais, naturalmente, é o 18 Brumário de Luís Bonaparte (os extratos do livro no Leitor são bons) –, verá que é mais ou menos isso o que o próprio Marx faz. Se você achar que funciona, beleza; se não, use outro esquema. Divirtam-se discutindo como ele se sai contra grandes modelos históricos recentes produzidos por economistas, como os de Barry Weingast e os de Acemoglu e Robinson; ou com grandes narrativas filosóficas como a do Habermas. Dica: se você não está tentando juntar os dois tipos de narrativa, você não está jogando o mesmo jogo do Marx.



Agora, mesmo se aceitarmos esse esquema todo, o que garante que (a) o capitalismo, eventualmente, vai entrar em contradição com o desenvolvimento das forças produtivas, e que (b) mesmo que isso aconteça, o estágio (o “modo de produção”) seguinte será o comunismo?



Pensa rápido aí, porque agora é 1848, voltamos alguns textos para trás no Leitor, e está com cara de que vai ter revolução na Alemanha. Alguém vai ter que escrever um manifesto. Mais especificamente, O Manifesto.



4.

O Manifesto é um colagem sensacional, em que as diferentes correntes dentro do pensamento do Marx aparecem mais sobrepostas do que propriamente sintetizadas. Começa (depois da história do fantasminha) dando uma virada no esquema da Ideologia Alemã, declarando que a história “até hoje” é a história da luta de classes. Divirtam-se conciliando essa versão, que sugere um papel importante para a ação política, com a versão do Prefácio, que parece mais determinista.



Segue o maior elogio à transformação burguesa que eu já vi: a burguesia produz obras que superam as pirâmides do Egito, o mercado mundial dissolve as barreiras nacionais, acaba com a idiotia da vida rural, forma-se uma literatura universal, etc. Em sequência, denuncia-se que, ao mesmo tempo, os proletários vivem na miséria (o que era a mais pura verdade). Logo depois, explica-se que os comunistas não são um partido separado do operariado, apenas sua facção mais consistentemente internacionalista e comprometida com a transformação de longo prazo (se explica aí, Lenin).



E depois há um silêncio. No Manifesto, não há uma solução sobre como, exatamente, o operário vai aplicar na história o jiu-jitsu dialético pelo qual, depois de disciplinados e racionalizados pela produção fabril, os homens tomam o controle da produção, passam a regular conscientemente a sua interação com a natureza, e inauguram a história humana propriamente dita. Há meia dúzia de slogans sobre isso, e é dito que tanto a propriedade privada quanto o salário (um é inteiramente indissociável do outro) serão extintos uma hora dessas. Mas no programa político concreto propriamente dito, o que há é uma coleção de ideias dos socialistas anteriores: imposto progressivo, confisco da propriedade dos burgueses que fugissem do país (como os nobres emigrados da revolução francesa), várias melhorias sociais, e, vejam só, nada de confisco generalizado da propriedade privada (cuja superação, entretanto, permanece como objetivo principal, central, de longo prazo).



Você pode até ser a favor disso tudo, mas nada disso corresponde ao ideal romântico anterior. Se você fosse o espírito absoluto hegeliano, nessa altura estaria olhando para Marx e Engels e dizendo, “Acharam que era fácil, seus muiézinha? Nunca serão.”



Restava, portanto, a tarefa de descobrir no capitalismo os sinais da transformação futura, e para isso era preciso discutir economia.



5.

Há dúzias de maneiras diferentes de ler O Capital, dependendo, em geral, de sua resposta para 3 perguntas: 1) O quão hegeliano é aquilo? Marx ali vira economista e deixa de ser filósofo ou, no fundo, continua tratando dos mesmos problemas com outros instrumentos? 2) O que Marx quer fazer ali é economia no mesmo sentido que, digamos, Keynes, ou Samuelson, é economia? e 3) Essa porra desse livro está pronto ou não? Marx só publicou o primeiro volume, mas não porque tenha morrido logo depois de tê-lo feito (como bem notou o Giannotti), o que sugere que ainda queria mudar significativamente o negócio. Há razões e citações para justificar diferentes respostas, quem se interessar por isso pode se divertir muito. As minhas respostas a seguir.



Começando pela segunda questão. O Capital talvez tenha alguma contribuição a dar à ciência econômica, em especial na teoria das crises (onde talvez se encontre alguns parentescos surpreendentes), embora, naturalmente, tudo lá tenha que ser dramaticamente atualizado depois de 100 anos de desenvolvimento da disciplina. Agora, qualquer que seja sua opinião sobre isso, acho difícil sustentar que O Capital seja um livro de economia no sentido atual. Como teoria da formação de preços, por exemplo, é esquisito. A teoria do valor-trabalho que parece determinar os preços no começo do livro, por exemplo, vira um negócio diferente (ou não vira? procurem aí no Google “transformation problem marxism” e divirtam-se) com a introdução dos “preços de produção” mais à frente. Também não há nada que indique que a política econômica pode contornar os problemas do capitalismo, como tentam fazer os macroeconomistas. Na verdade, se você partir do princípio de que a economia moderna tem como objetivo fazer o capitalismo funcionar melhor, é fácil perceber por que Marx não se interessa muito por isso.



O Capital é, antes, a crítica da economia política (sempre vale a pena ler o subtítulo do livro), como antes houve a crítica da religião pelos jovens hegelianos, ou a crítica da filosofia do direito de Hegel pelo próprio Marx (ou é outro tipo de crítica? divirtam-se). A economia política que interessa Marx é mais ou menos a que vai do Smith ao Ricardo (dois sujeitos que ele admirava intensamente), e é uma discussão profunda sobre como a sociedade deve ser organizada (o que é um problema de alta dignidade filosófica). Já na época do Marx (segundo ele) a economia começava a virar em direções menos ambiciosas (refletindo o fato de que o capitalismo já se consolidava, e a tarefa dos economistas clássicos ia se realizando). Marx conscientemente vai na contramão desse processo, voltando à economia política (a melhor justificativa que já se havia produzido para o capitalismo) para procurar nela desdobramentos em que se pudesse identificar outros grandes processos estruturais, como os descritos pela EP clássica durante a origem do capitalismo.



Chequem as citações do Marx para ver a turma que o inspirou a aderir à teoria do valor-trabalho (tem até Benjamin Franklin) e vocês vão ver que o negócio tem ótimo pedigree clássico e burguês. Da teoria do valor-trabalho para a mais-valia é só supor que os bens são trocados mais ou menos pelo seu “valor” (não é uma decorrência necessária, mas é plausível no longo prazo), se perguntar onde, então, produzir-se-ia o lucro, e a conclusão de que há trabalho não pago parece plausível (mas não inevitável: o lucro poderia ser gerado nas flutuações do preço ao redor do valor).



Aí vocês vão dizer: mas tem o risco do capitalista, que precisa ser remunerado, e não aparece nesse raciocínio. O problema é que aparece, mas dentro de um negócio que só será desdobrado ao longo do livro. O tempo do trabalho que determinará o valor da mercadoria é o tempo de trabalho socialmente necessário (não adianta você ser vagabundo e demorar mais pra produzir, o preço do seu produto não vai aumentar). Dentro do socialmente necessário, está a economia “burguesa” toda, e mais um pouco, mas o livro acaba sem sabermos quais as consequências dessa entrada para ela, economia burguesa. Porque quem calcula o socialmente necessário é o mercado. O sujeito que produzir o suficiente para a demanda (“socialmente necessário” como “necessário para a sociedade”) com o menor gasto de tempo de trabalho possível (“socialmente necessário” como “o tempo que é necessário dadas as possibilidades de uma certa sociedade”) expulsa os concorrentes, e quem sobra é o “socialmente necessário”. No começo do livro, Marx dá isso de barato, o que, em si, não seria problema: não há nada de errado em começar com um modelo simplificado e ir sofisticando a coisa mais pra frente.



Mas, antes de entrarmos nessa história, Marx nos convida a passar da análise da circulação (onde é tudo “liberdade, igualdade e Bentham”) para a produção (onde se esbarra no aviso “admittance on business only”). E aí começa o show de horrores, onde fica claro que o trabalho alienado é ainda mais feio na sua descrição empírica do que na sua crítica teórica: dentro da fábrica, o operário é um sujeito inteiramente sem autonomia, que segue o ritmo da máquina, e investe suas melhores energias humanas em um processo que só lhe diz respeito porque precisa receber em troca um salário de subsistência. Seguem descrições do processo de trabalho nas fábricas inglesas, relatos das discussões sobre a necessidade de obrigar os pobres a trabalhar, e horripilantes histórias sobre as jornadas de trabalho, entre as quais cito um exemplo: no século XVII, na Inglaterra, foi publicado um panfleto anônimo sugerindo que os pobres que não quisessem trabalhar fossem recolhidos a “terror houses” onde seriam obrigados a trabalhar 12 horas por dia. Lembra Marx: em diversos momentos após esse fato, na economia “normal”, a jornada de trabalho, inclusive para menores de 12 anos, foi maior que isso. É muito difícil afirmar que um sujeito que trabalha na fábrica 14, 16 horas por dia, para poder gerar uma família em que as crianças se submetem a isso desde os 10 anos de idade, é livre, em qualquer sentido importante. Isso pode até ser a melhor opção para ele no momento (pensem nos trabalhadores chineses hoje em dia), mas não inspira em ninguém a vontade de escrever um poema em homenagem a Von Mises.



Esse vai-e-vem entre produção e circulação sugere (a mim, pelo menos) que os conceitos são desenvolvidos ao longo do livro, e que só serão apresentados em sua forma final no fim. Só que não tem fim. Respondendo à terceira questão acima, não acho que O Capital estivesse, quando Marx morreu, sequer perto de estar pronto. Isso não é óbvio, e muita gente boa discorda, mas se você lê os Grundrisse (estudos que Marx fez para escrever O Capital, só publicados na década de 30, pelo Ryazanov, um sujeito que morreu nos expurgos stalinistas), é difícil não ter a impressão de que o livro teria muito mais coisa (por exemplo, mais coisas sobre o mercado mundial). Sou da opinião de que vale a pena ler os volumes póstumos comparando com os Grundrisse, para se ter uma ideia de para onde o livro estava indo quando parou. Para citar duas coisas que causam um certo desconforto para os que tentam tratar a obra do Marx como um sistema fechado: no terceiro volume do Capital, as sociedades por ações são descritas como eliminação da propriedade privada dentro do capitalismo, uma citação que outro dia foi ressucitada pelo partido de governo do país mais “Manchester XIX” do mundo atual, a China; e, nos Grundrisse, temos o célebre “fragmento sobre as máquinas”, em que se discute a possibilidade de algum negócio esquisito (suspensão, abolição, transformação? divirtam-se) acontecer com a lei do valor dentro do capitalismo, conforme avança a mecanização. Ou O Capital não está terminado, ou terminou de um jeito bem esquisito.



Não é à toa que Eduard Bernstein, pai do reformismo socialdemocrata e executor literário do Engels (currículo de marxólogo é isso aí), reclamou que o terceiro volume do Capital era um tremendo anticlímax. Daquele começo tonitruante sobre a exploração era possível supor um final apoteótico com uma revolução operária bacana, mas o que vemos são vários sinais de que o capitalismo, de sua maneira caótica, pode se adaptar (uma crise que faz parte de um ciclo, afinal, pode muito bem gerar outro movimento ascendente), que formas mais ou menos pós-capitalistas podem aparecer dentro do capitalismo, que o número de capitalistas pode continuar crescendo, enfim, dá licença mas eu vou continuar sendo reformista (disse Bernstein, digo eu). Bernstein continua afirmando que o comunismo sobrevive no Marx maduro meio como resíduo hegeliano, e no Capital há mesmo trechos que lembram muito a terminologia anterior (com o que passamos à primeira pergunta lá do começo).



Bernstein tem toda razão em ficar decepcionado. Agora, se você olhar direito para os trechos hegelianos citados, vai ver que eles não são só um resíduo; eles afirmam que o trabalho para suprir as necessidades materiais fundamentais nunca vai ser efetivamente o reino da liberdade — a liberdade começa fora do trabalho. Dá a impressão de que a coisa está indo na seguinte direção: o trabalho fabril vai sempre ser meio alienante, embora, em uma cooperativa de livres produtores, sob um plano que suprima as irracionalidades (crises, flutuações, etc.) do sistema capitalista, a coisa fique melhorzinha. Mas bom mesmo é quando a redução da jornada de trabalho passa a ser o principal objetivo. Eu acho que o melhor desenvolvimento do Marx nos seus próprios termos é o Adeus ao Proletariado, do Gorz (que tem seus próprios problemas, mas não cabe discuti-los aqui). A propósito, o organizador do Leitor sabe que esse trecho é importante: é a única coisa na contracapa do livro.



E, vale notar, Marx não foi o único estudioso do capitalismo que tinha esperança de que a jornada de trabalho um dia se tornasse muito menor.



6.

Mas vem cá, Marx, como é que faz essa planificação aí?



Aqui há duas questões. Uma é como seria o processo de planificação. Isso Marx não sabe. Justamente porque não se diz como o “socialmente necessário” do trabalho (que é a fonte de todo valor) seria calculado se, como normalmente se supõe, o mercado for abolido. Procurem aí no Google “debate sobre o cálculo socialista”. E divirtam-se. Há inclusive uma literatura sobre “socialismo de mercado” que tenta resolver a questão admitindo que, sem mercado, fica difícil. A não ser que você queira morar em uma comuna maoísta maluca qualquer — se quiser, vai com Deus.



A segunda questão é, que Estado faria isso? O Leitor se encerra com dois textos que deram muito pano pra manga. No primeiro, A Guerra Civil na França, Marx se derrama de amores pela Comuna de Paris, que ele assistiu ao vivo. Ali Marx lança a ideia de que o proletariado não pode simplesmente tomar o Estado burguês e usá-lo para seus próprios fins. A forma do Estado importa. Esse negócio burocrático imenso que consome boa parte dos recursos da sociedade nunca vai ser um instrumento adequado para a construção do socialismo. O Estado operário é a Comuna de Paris: todos os funcionários públicos são eleitos e sujeitos a recall, ganham o salário de um operário, e têm pouquíssima autonomia (bem fiscalista, Marx diz mesmo que o proletariado realiza o objetivo burguês do “governo barato”). Esse Estado, organizando o planejamento das cooperativas dos trabalhadores livremente associadas, vai produzindo o comunismo. Tendo isso em mente você entende porque, quando apareceram os conselhos de trabalhadores (os soviets) na Rússia revolucionária, os marxistas se entusiasmaram tanto: os soviets eram bem parecidos com o esquema da Comuna. Entretanto, assim que os bolcheviques tomaram o poder, os soviets começaram a ser esvaziados, o que, em parte, foi sacanagem dos bolcheviques, mas em parte era fraqueza do projeto: como teria sido possível planejar a economia como um todo a partir dos Conselhos de Fábrica? Divirtam-se com isso, sem esperar receber qualquer ajuda do Marx.



Na Crítica ao Programa de Gotha, as anotações do Marx (publicadas postumamente e normalmente lidas como se fossem um texto pronto, o que é um erro) sobre o programa do partido socialdemocrata alemão, o autor produz alguns argumentos bons, umas objeções meio pedantes, umas notas meio confusas. Na transição para o socialismo, há um período em que o proletariado toma o poder e o utiliza para suprimir o capitalismo, a “ditadura do proletariado”. Me parece claro que ele se referia ao Estado da Comuna: a crítica era, no fundo, à estratégia de utilizar a democracia representativa (e não aquele esquema democracia direta bem anarquistona da Comuna) como instrumento da construção socialista. Agora, visto que um dia, décadas depois, uma ditadura totalitária buscaria legitimação em Marx, não há como não lamentar que ele tenha usado “ditadura” para descrever sua versão da Comuna — e, reconhecido seja o mérito, Bakunin, que quase só falou besteira na vida, dessa vez bem que avisou que ia dar merda.



Bem entendido, Marx defendia o uso da violência na revolução socialista, quando fosse necessário (admitindo que ela talvez não o fosse na Inglaterra, nos EUA e na Holanda), mas sua referência a esse respeito claramente é a história da Revolução Francesa: um negócio violento, sem dúvida, mas nada remotamente semelhante ao que se viu nos países socialistas no século XX. Na verdade, Marx até torcia para que a revolução operária tivesse menos “irracionalidade” do que a burguesa.



Um economista austríaco especialista em autogestão iugoslava (quantas frases que você já leu tem um sujeito desses?), David Prychitko, disse-o bem quando disse que em Marx há uma contradição (ou uma tensão? cito de cabeça) entre duas visões, uma de planificação centralizada e outra de autogestão extremamente descentralizada. Marx nunca resolveu isso, e sabemos qual das duas inspirou o partido máquina-de-guerra do Lenin (que, meio bizarramente, escreveu, poucos meses antes de tomar o poder, um livro defendendo o modelo da Comuna de Paris para o Estado). Ainda é fácil encontrar essa contradição no pensamento de esquerda. Peguem a entrevista do Lula para o Guattari nos anos 80 e vocês verão o Lula admitindo que defende a propriedade estatal, mas pedindo controle operário sobre as empresas estatais. É óbvio que, se os conselhos de fábrica (versões das cooperativas do Marx) não conseguirem planificar a economia (pela falta de uma máquina de calcular semelhante ao mercado), o Estado vai tentar assumir a tarefa, e é óbvio que, nesse caso, os conselhos vão ser esvaziados até a irrelevância. Se for possível resistir ao Estado, os conselhos provavelmente vão começar a cumprir as funções de capitalista.



Se você tiver algum plano para resolver esse problema, boa sorte. Eu, por mim, vou me contentar com um keynesianismozinho bem moderado aqui e ali, para suavizar as crises do mercado, tentando um impostozinho mais progressivo aqui e ali, e torcendo para que, nas próximas décadas, o operariado internacional consiga novas reduções da jornada de trabalho, sempre levando em conta que (a) como já disse o Tom Friedman, enquanto a Europa discute a semana de 35 horas, na China implementa-se o dia de 35 horas, e (b) não é fácil determinar a extensão da jornada de trabalho de certos tipos de trabalho imaterial cada vez mais comuns. Proletários do mundo todo, cês têm que ver isso aí.



7.

A exposição anterior teve o seguinte propósito: você se interessa por esse tipo de discussão sobre a estrutura básica da sociedade? Se for o caso, leia Marx. Autores de diferentes correntes políticas, desde que interessados em questões sobre a estrutura básica da sociedade, ganharam em discutir com o marxismo. Hayek, por exemplo, nunca foi tão bom quanto quando discutiu planejamento econômico com os socialistas. Hannah Arendt também soube tirar bom proveito de sua leitura. Mas advirto que pode dar errado: milhares de marxistas e antimarxistas se perderam nos meandros da argumentação do Marx, que muitas vezes sobreviveu só em rascunhos, e gastaram seus anos de estudo de maneira meio estéril.



Só posso dizer que, para mim, foi muito, muito bom ler o sujeito. Entre as várias coisas que tirei da leitura, destacaria as seguintes.



Marx oferece uma visão muito interessante da singularidade da sociedade moderna. A versão corrente é mais ou menos assim: a sociedade moderna racionaliza as instituições, desarticula as hierarquias políticas tradicionais e recompensa, na economia de mercado, a iniciativa individual. Há muita verdade nisso. Há uma crítica conservadora que exige a preservação de espaços não racionalizados e não individualistas na família ou na Igreja. Há algum mérito nisso. Mas: Marx acha que o capitalismo, cedo ou tarde, dilacera esses espaços, e se os conservadores não gostarem disso, bom, se ferraram.



O capitalismo gera suas próprias hierarquias, porque a mercadoria força de trabalho não é igual às outras, ela é a vida do sujeito, e o sujeito passa 16 horas por dia na fábrica, onde não tem mercado (leiam o Coase), mas sim um nível de despotismo que faria corar o Leviatã Hobbesiano. O individualismo é produzido e reproduzido por uma imensa máquina social, Das K, que recompensa com imensa eficiência o quanto da sua individualidade você submete à demanda dos outros. Isso só aparece pra você como uma narrativa em que você é um protagonista solitário devido a um misticismo particularmente primitivo, que faz você acreditar que, quando usa um smartphone no trabalho, está se relacionando com uma coisa, e não com a imensa rede social que entrelaça você, o minerador do Congo e o designer da Finlândia, para não falar da polícia e das escolas de cada um desses lugares. Como bem disse Marx, o homem é um animal que só se isola em sociedade.



E, é claro, a racionalidade individual nem sempre é bem traduzida pelo mercado em racionalidade coletiva: daí as crises periódicas. A sociedade moderna não é só isso, mas é também isso, e Marx foi o cara que desenvolveu essa ideia mais que os outros. Ele esperava que fosse possível eliminar essas irracionalidades e preservar o elemento dinâmico da sociedade moderna, mas a experiência sugere que as duas coisas estão muito mais organicamente ligadas do que ele supunha. Ponto para Keynes, que tentou amenizar (e não resolver) esse problemas, menos com um Aufhebung hegeliano e mais com umas malandragens pragmáticas.



Em segundo lugar, não acho que a experiência tenha negado outro insight marxista, o de que a libertação da classe operária, seja lá o que for isso, só pode ser obra da classe operária. O leninismo foi um fracasso indiscutível, enquanto os países com movimento operário forte se tornaram socialdemocratas — não porque os operários tenham se vendido, mas porque, não sendo suas bundas água benta em que todo mundo passa a mão, não invejaram a sorte do operariado soviético. O movimento operário foi fundamental para a conquista do sufrágio universal, e não aceitou descartar sua conquista com a leveza sugerida pelos leninistas. E a socialdemocracia foi um sucesso, só entrando em crise quando a conjunção globalização/pós-fordismo tornou a política socialdemocrata bem mais difícil. Ainda torço para que alguma solução socialdemocrata seja possível.



Finalmente, não tenho uma grande justificativa teórica para defender a filosofia da história do Marx, mas devo dizer que, devidamente avacalhado, o modelo me serve bem, analiticamente. Nem sempre funciona. A democracia tem sua própria dinâmica, que interage com os interesses de classe de maneira complexa. A cultura é mais complicada ainda, e podemos ver como ela às vezes escapa do radar marxista pela reação meio patética do Toni Negri diante do 11 de Setembro (“que tenho eu a ver com isso?”). Mas, em geral, ainda acho que vale a pena começar a análise dentro do quadro economia/classes/política. Se para você funcionar melhor outra coisa, beleza.



Enfim, tem gente para quem ler Marx vai fazer bem, tem gente para quem ler Marx vai fazer mal. Nisso ele é parecido com o Nietzsche. Mas, como bem disse Weber, não se pode entender a modernidade sem entender os dois.




::: O leitor de Marx ::: José Paulo Netto (org.) :::

::: Civilização Brasileira, 2012, 503 páginas :::

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Manoel Messias Pereira

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