terça-feira, 14 de agosto de 2012

Livro resgata história do jornalismo no Brasil



.A verdade eu falo;



gosto da verdade



e não piso nela,



se não escorrego e caio.



Antônio Bruega, personagem da reportagem A nova guerra de Canudos, de Audálio Dantas, publicada na revista O Cruzeiro, na edição de 5 de dezembro de 1964.



***



A reportagem está morrendo?



A pergunta não é nova: foi tema de debates de que José Hamilton Ribeiro e eu participamos em diferentes períodos de nossas carreiras num intervalo de 30 anos — a primeira, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa, no auge da ditadura militar; a segunda, mais recentemente, na PUC do Rio de Janeiro, já na plenitude democrática



A lembrança do tema destes debates veio-me na manhã desta quarta-feira gelada em São Paulo, que não dá coragem de sair de casa, ao folhear o livro Tempo de Reportagem (Editora LeYa), de Audálio Dantas, 80 anos, lançado na noite anterior.



Trata-se de uma antologia dos melhores trabalhos publicados pelo autor nas revistas O Cruzeiro e Realidade. As duas publicações, que marcaram época e ficaram na história da nossa imprensa, deixaram de circular faz muito tempo.



Se eu fosse estudante de jornalismo ou estivesse começando no ofício, compraria este livro correndo. É bom também para os mais antigos não esquecermos os velhos bons tempos da reportagem.



Vale mais do que mil aulas teóricas e todas as teses já escritas sobre este gênero jornalístico cada vez mais escasso na nossa imprensa.



Não, a reportagem não morreu, mas é raro encontrar algo parecido com o que Audálio escreveu sobre a realidade brasileira nas décadas 60 e 70 do século passado, os anos de chumbo da censura e da tortura, tempos em que ser jornalista era uma atividade de alto risco.



Ainda muito jovem, tive a honra de ser convidado a escrever o prefácio do primeiro livro com reportagens de Audálio Dantas, O Circo do Desespero, em 1976, que agora ele relança com textos de introdução a cada capítulo contando como estes trabalhos foram feitos.



Com o apropriado subtítulo Histórias que marcaram época no jornalismo brasileiro, o livro tem apenas uma grave falha: nas suas 286 páginas, não publica nenhuma fotografia dos personagens e lugares retratados pelo repórter.



Um livro de reportagem sem fotos é como uma bela canção gravada só com a letra, sem música. Reportagem para mim sempre foi uma parceria entre repórter e fotógrafo, um ajudando o outro a contar a mesma história em texto e imagem, ambos com a tarefa de levar o leitor até onde nós estivemos, colocá-lo no cenário dos fatos.



Ao reler o prefácio que fiz em 1976 (agora promovido a posfácio no novo livro), tempos de governo Geisel, o Ernesto, penúltimo dos generais-presidentes que mandaram no país após o golpe militar de 1964 — ano em que Audálio Dantas publicou a reportagem sobre Canudos citada na epígrafe —, dei-me conta de que hoje penso da mesma forma e escreveria exatamente o mesmo texto, sem tirar nem por.





Das duas uma: ou eu sou coerente demais, um teimoso que nunca muda de opinião, ou a nossa imprensa mudou muito para continuar no mesmo lugar, com os mesmos desafios e as mesmas mazelas de quando se começou a perguntar se a reportagem estava morrendo.



A única diferença foi descobrir, modéstia à parte, que naquela época o blogueiro do burrico do Balaio tinha mais facilidade e escrevia bem melhor do que hoje... Tempo que passa, vida que segue...



O leitor pode conferir o que estou dizendo acima no texto do prefácio da 1ª edição do livro O circo do Desespero, escrito no dia 22 de novembro de 1976, que reproduzo abaixo.



***



Tem cara de livro, capa de livro, preço de livro, papel de livro.



Mas não se enganem. Isso aqui é um jornal de hoje ou, na pior das hipóteses, uma revista da última semana. Ao menos, foi essa a impressão que me deu, terrível.



É melhor que vocês leiam logo. Depois a gente conversa.



Cuidado!



Então? Poderá alguém dizer:



"Mas como? Jornal? Revista? Hoje em dia nada disso acontece mais...Coisas de antigamente. A imprensa agora está se preocupando com outros assuntos..."



De fato, histórias como as relatadas por Audálio Dantas nesta antologia de reportagem praticamente desapareceram da nossa imprensa. Parece mesmo que se trata de pura ficção, ambientada em outro país, num século qualquer do passado ou do futuro.



Que terá acontecido?



Quem sabe tenha sido isto: já que não se podia mudar os acontecimentos, pois eles insistiam em continuar acontecendo, resolveu-se, por livre e espontânea vontade — ou não — mudar a narrativa dos fatos. Ou, simplesmente, mudar de assunto.



Num momento em que se fala no renascimento da reportagem, ou na tímida tentativa da imprensa de retomar sua tarefa de retratar fielmente uma época, nada melhor do que contar como se fazia — e nem faz tanto tempo.



Sai em boa hora esta incrível reportagem de Audálio Dantas, feita de tantas histórias distintas como se fossem uma só: a nossa história, enfim, contada pelo repórter, em que a data, o tempo pouco importam.



Tenham o nome que se queira, estas páginas impressas nos farão muito bem, nem que seja só para incomodar a poeira dos descrentes da conveniência e provar que, um dia, ontem mesmo, as coisas já foram ditas com todas as letras, sem firulas ou preciosismos, com franqueza.



Mais do que tudo, porém, a leitura destas páginas serve para desmistificar algumas verdades absolutas, tantas vezes apresentadas como desculpas para atitudes menos decentes, em que muitos acabaram acreditando.



Como, por exemplo, aquela de justificar todas as omissões com uma frase: "Meu filho, a reportagem morreu em 1968" [em 13 de dezembro de 1968, foi editado pelo general Costa e Silva o Ato Institucional Nº 5, o golpe dentro do golpe, que institucionalizou a censura].



Muleta que durante todo esse tempo serviu para muita gente cuidar do patrimônio, sem maiores dramas de consciência, essa verdade absoluta é aqui desmentida sem perdão. Várias das mais contundentes e dramaticamente verdadeiras reportagens de Audálio Dantas, como o livro prova, foram publicadas depois do dia em que o país entrou no quinto ato. Foram feitas, assinadas e publicadas em 1969, 1970, 1971, 1972 e 1973.



E mais: não saíram nos anos seguintes unicamente porque o veículo que as publicava, a revista Realidade, resolveu mudar de assunto, negando seu nome, até morrer de morte natural.



A Realidade morreu.



O Cruzeiro morreu.



A Folha de S. Paulo correu da reportagem.



Mas o repórter sobrevive, vive, apesar de tudo.



Taí, sem negaças: o repórter vivendo e sofrendo a vida e morrendo a morte, em cada frase, em cada vírgula, de todas as formas. Formas e conteúdos que se fundem como a letra e a música de um Chico Buarque de Hollanda.



Taí, sem entrelinhas nem metáforas, o tempo — antes e depois de 1968 — em que o povo era personagem. O povo brasileiro, do presidente aos catadores de caranguejos, das crianças da mortalidade infantil mortas de fome ao Joaquim Salário-Mínimo — os personagens da nossa realidade estão aí, livres de enfeites ou rapapés.



Taí, sem perdão, o brutal contraste com o jornalismo bem-comportado, oficialesco e fútil dos dias atuais, em que para ser personagem digno de ter seu nome impresso o cidadão tem que ocupar necessariamente um cargo público no primeiro escalão, se não for jogador de futebol, grã-fino colunável ou artista de televisão.



Taí um repórter que escreve com a franqueza da gente da rua, trabalhando as palavras com o cuidado de quem lida com uma arma ou uma criança, que põe o dedo na ferida e não pede licença pra dizer o que acontece.



Neste País sem memória, não deixa de ser um acontecimento a publicação de reportagens já publicadas. Quem será capaz de ficar insensível a essa constatação de que a nossa vida, hoje, vai-se perdendo por entre os dedos feito areia, sem quase ninguém para contar?



Para mim, e para muitos da minha geração, tenho certeza, esta antologia cheira mais a notícia, a revelação, a coisa nova, a desafio, do que a qualquer boleresca, nostálgica lembrança.



Chega-se, é claro, a ter saudade de 1967. Pior, contudo, é a sensação de que, liberdade de expressão à parte, praticamente nada mudou. As desgraças de uns, os privilégios de outros continuam correndo paralelamente, impunemente, pois que não há, ao menos, quem descreva os novos cenários e os novos personagens com a garra e a certeza dos audálios dantas da vida que a vida tirou das ruas e escondeu atrás de mesas de burocratizadas e homogeneizadas redações.



Das mazelas das grandes cidades, dos restos humanos, do supérfluo e da fome à esperança, à salvação sempre adiada, ao mormaço, ao sol e à seca dos sertões, o homem e o meio continuam numa luta danada, desigual — que leva ao meio homem, à meia verdade, a tudo pela metade, se tanto.



Nada é exótico, pitoresco no mundo que Audálio desnuda, com simplicidade e clareza — bem diferente dos textos bem embrulhados hoje, impingidos aos leitores por aqueles que, sem coragem de dizer as coisas como elas são, brincam de juntar letras sem maiores compromissos com seu tempo e sua gente.



Capaz de entender o conjunto, sem arrotar erudição, sabendo das coisas para poder contar, o autor destas reportagens vai contando as pequenas tragédias do nosso cotidiano com a grandeza dos que não se limitam a assistir.



Audálio é daqueles poucos que não confundem cara feia com seriedade e prova que o importante não precisa, necessariamente, ser chato. Por mais complexo que seja o assunto, nunca esquece o fundamental sobre as consequências. Um país, uma doença, um prédio ou uma entidade — o homem está sempre no centro das suas histórias não porque o autor queira, mas porque ele realmente está, assim é, por mais que se queira camuflar os fatos.



Lendo o que o Audálio repórter escreveu, fica mais fácil entender o Audálio líder de uma classe quase em extinção, que luta para sobreviver com dignidade. Nada como a vida de repórter percorrida sem freios nem fronteiras para saber fazer a hora, sempre de pé no chão.



Como dizia Antônio Bruega, o personagem do seu trabalho sobre "A nova guerra de Canudos", que Audálio ouviu com muita atenção:



"A verdade eu falo; gosto da verdade e não piso nela, senão escorrego e caio".



***



Na abertura do texto da contracapa do livro, situa-se o momento em que a vida de Audálio Dantas sofreu uma guinada, deixando-o até hoje fora das grandes redações, sem poder fazer o que mais gosta: reportagem.



"Em 1975, Audálio Dantas deixou as redações para assumir a presidência do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Naquele momento, iniciava-se o percurso do protagonista da História — na denúncia corajosa do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pela Ditadura Militar —, e praticamente se interrompia a carreira de um dos mais brilhantes jornalistas brasileiros".



Em tempos de acaloradas discussões provocadas pela Comissão da Verdade, este livro pode ajudar as novas gerações a entender do que se trata.



Em tempo: está completando cinco anos neste mês de julho a valente Brasileiros, revista mensal de reportagens, criada por jornalistas e inspirada na falecida Realidade. Bem mais modesta e com menos recursos, a Brasileiros reúne um pequeno grupo de repórteres, do qual também participo, que procura manter acesa a chama para que a reportagem nunca morra.









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Manoel Messias Pereira

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