domingo, 17 de março de 2013

Feridas nunca cicatrizadas


17/03/2013 | OUTRO OLHAR

Feridas nunca cicatrizadas


Nada como a arte para escancarar realidades que, por serem insuportáveis, as outras linguagens tentam esconder - Por: Arte: Lucas Araújo
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Notícia publicada na edição de 17/03/2013 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 4 do caderno Caderno de Domingo - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.

A tortura é um dos fantasmas mais sinistros da condição humana. Na maior parte das vezes este é um tema proibido. Governos chegam ao espanto de negar a existência dessa prática abominável, por mais que ela seja hábito e tradição nas sociedades desde a criação do homem. O impressionante é que uma nova onda do debate sobre a tortura foi resgatado por um filme norte-americano, "A noite mais escura", da diretora Kathryn Bigelow. Tivesse somente este item como qualidade, o filme já teria cumprido a missão de sacudir os ânimos adormecidos de democracias que não conseguem eliminar a tortura como método de investigação e demonstração de poder.

O filme causou polêmica porque mostra que métodos de tortura foram empregados pelo governo dos Estados Unidos nos caminhos percorridos até o esconderijo de Osama Bin Laden, no Paquistão, onde aconteceu a operação que matou o líder da Al Qaeda em 2011. Acusam Kathryn de ter feito apologia à tortura. Outros acham isto e mais aquilo e ninguém se entende. E isto acontece porque não houve nem uma coisa nem outra. Kathryn contou uma história tão horrível que os nossos sentidos se recusam a aceitá-la. O que importa é que o filme mexeu numa ferida de culpa e de crise de consciência jamais cicatrizada na humanidade.

Nada como a arte para escancarar realidades que, por serem insuportáveis, as outras linguagens tentam esconder. A literatura e toda a sua matéria de ficção como transposição poética da realidade também presta este serviço, tal qual uma câmera oculta que desvenda mistérios. "Nós, os romancistas, devemos agradecer à Inquisição espanhola por ter descoberto, antes de qualquer crítico, a inevitável natureza subversiva da ficção", escreveu o peruano Mário Vargas Llosa ao recordar que o romance foi proibido pela Inquisição nas colônias espanholas: "Os inquisidores consideravam esse gênero literário tão perigoso para o destino espiritual dos índios quanto para o comportamento moral e político da sociedade, no que tinham toda a razão."

Tomando as impressões de Llosa como gancho, a ficção é subversiva sobretudo quando invade o terreno da tortura. O conto "Na Colônia Penal", de Franz Kafka, exibe o problema do ponto de vista de quem tem o controle sobre as vítimas. No romance "1984", do inglês George Orwell, a crueldade é tamanha que em certo trecho do livro chegamos a ter a incrível ilusão de que vivemos uma situação de asfixia como a do personagem Winston Smith. O gênio de Orwell está em revelar que somos todos Winston Smith e a sociedade fictícia que o devora tem incríveis semelhanças com o labirinto em que vivemos. Não há pesadelo mais assustador.

Há um trecho do livro que merece destaque especial. É o que mostra a possibilidade de uma vítima ter a cabeça aprisionada no interior de uma gaiola e ficar totalmente exposta à voracidade de ratos famintos. E a vítima não pode fazer nada. O leitor, nesse instante, não resiste e tem que abaixar um pouco o livro para tomar fôlego e continuar respirando. A experiência é devastadora.

Eis um trecho: "Inconcebível, inconcebível que um só golpe produzisse tamanha dor! O amarelo se foi e ele pôde enxergar os dois a contemplá-lo. O guarda ria das suas contorções. Ao menos uma dúvida fora esclarecida. Nunca, por nenhuma razão, se poderia desejar que a dor aumentasse. Da dor, só se podia desejar uma coisa, que parasse. Nada no mundo era tão horrível como a dor física. Em face da dor não há heróis, não há heróis, ele pensou e tornou a pensar, torcendo-se no chão, segurando à toa o braço esquerdo invalidado."

A novela "Servidão Humana", do inglês William Somerset Maughan, mostra outro retrato da dimensão a que a tortura pode levar o ser humano a partir do ponto de vista de uma mulher, Mildred, que despreza um homem muito apaixonado, Philip. Nem "O Ébrio" de Vicente Celestino é tão triste como essa história do mestre inglês. Quando terminamos a leitura, temos a sensação de que somos Mildred e Philip e isto explica os nossos estados de alma em constante choque e tensão.

O Brasil não passa incólume. Nossa história também é carregada de fantasmas dessa natureza. Na época da escravidão negra, fugitivos recapturados iam para o tronco e as sessões de açoites. O martírio era indescritível. Recordo que na infância os livros de história omitiam essas torturas e, quando mencionavam o assunto, preferiam usar a palavra castigo, como se assim pudessem suavizar um escândalo da nossa história.

Mais recentemente, nos anos de chumbo da história do Brasil, a tortura foi usada nos porões marcados pelo choro de filhos que não eram ouvidos por suas mães. Uma dessas pessoas, Dilma Rousseff, militante de esquerda, foi vítima de tortura e muitos anos depois o destino a conduziu ao cargo de presidente da República. Muitos outros, anônimos ou não, passaram por igual suplício. Muitos morreram, tiveram seus corpos devolvidos às famílias como "suicidas" ou foram sepultados em cemitérios clandestinos. Outros desapareceram.

Como repórter, tive a sorte de entrevistar pessoas que viveram experiências extremas. Em duas ocasiões falei com pessoas que foram torturadas. Os dois eram homens. Um deles, em 2004, nos 40 anos da ditadura militar, reagiu com um silêncio intrigante quando lhe perguntei se sofreu agressões graves. Como resposta, ele colocou a mão no olho direito e, com dificuldade, retirou um objeto: era um olho de vidro. Tinha perdido a visão numa sessão de tortura. Eu e o fotógrafo Luiz Setti, que também assistiu à cena, ficamos perplexos.

Outra vez, no ano passado, a vítima era outra pessoa, um homem na faixa dos 60 e poucos anos. Ele descreveu os maus tratos que sofreu com tantos detalhes que era como se sua memória tivesse congelado o sofrimento para sempre na sua memória. Ele concluiu o seu relato com uma lição: "Nós não podemos perder de vista a nossa pobre condição humana. Nós somos... não somos nada."
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Manoel Messias Pereira

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